Relatório escancara os conflitos no campo em Rondônia

Os dados foram publicados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no caderno de conflitos no campo de 2024.
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Voz da Terra
12 maio 2025
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Evento do relatório lembro os 30 anos do massacre de Corumbiara em Rondônia. (Foto: @ Francisco Costa - Voz da Terra) 

Redação Voz da Terra - Em Rondônia, os conflitos agrários continuam acentuados. Os dados mais recentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), reunidos no Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2024, revelam um cenário marcado por ocupações, desrespeito a direitos básicos, aumento das contaminações por agrotóxicos e episódios de violência letal. 

Em meio a esse retrato, a fala do professor Afonso Chagas, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), sintetiza o problema: “Estamos diante de uma engrenagem que devora gente e floresta para alimentar um modelo de desenvolvimento que não nos serve”. 

O caderno foi tornado público em Porto Velho na manhã da última sexta-feira, 09, no auditório do Ministério Público do Trabalho. O evento lembrou a morte de dezenas de pessoas no massacre de Corumbiara, que aconteceu em 09 de agosto de 1995 em Rondônia.  

De acordo com a CPT, Rondônia registrou em 2024 um total de 123 conflitos por terra, atingindo mais de 9.400 famílias. Foram 3 grandes ocupações e 4 acampamentos ao longo do ano, especialmente em áreas como Nova Brasilândia do Oeste, Porto Velho, Vilhena e Alta Floresta do Oeste. 

Povos indígenas, sem-terra, posseiros, quilombolas e pequenos agricultores lideraram essas mobilizações, enfrentando a resistência armada das milícias e a omissão do Estado.

"Os dados trazidos pelo caderno evidenciam que a não realização da reforma agrária e a destinação de terras para mercado agravam a violência no campo. De um lado, grandes empresas abocanham cada vez mais extensas áreas de terras agricultáveis e para as milhares de famílias que buscam um pedaço de terra a resposta é a violência e a criminalização", diz Welington Lamburgini que faz parte da coordenação CPT estadual.

Lançamento do caderno de conflitos 2024 da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia. (Foto: @ Francisco Costa - Voz da Terra) 

Mortes no campo 

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu no Acampamento Terra Santa, em Nova Mamoré. Em outubro, o pequeno produtor João Teixeira de Souza, conhecido como João da Van, foi assassinado. Era uma liderança local envolvida na luta pela regularização fundiária. 

A morte de João se somou a outras 12 vítimas em todo o Brasil naquele ano, todas em contexto de disputas agrárias. Rondônia teve ainda seis registros de tentativas de assassinato em áreas como Porto Velho, Guajará-Mirim e Costa Marques.

“A violência virou ferramenta de silenciamento. Quando não se resolve pela caneta, tenta-se pelo fuzil”, afirmou Afonso Chagas em referência ao aumento da letalidade nos conflitos fundiários em seu artigo publicado no Caderno de Conflitos.

Conflitos por água, barragens e invisibilidade

O avanço das usinas hidrelétricas continua no foco das tensões entre comunidades tradicionais e grandes empreendimentos. Rondônia registrou sete grandes conflitos por água em 2024, que atingiram mais de 4 mil famílias. Os casos se concentraram em Ji-Paraná, Porto Velho, Seringueiras e Machadinho D’Oeste. 

A principal queixa é o “não cumprimento de procedimentos legais” por parte dos empreendedores, especialmente em obras como a Usina Hidrelétrica Tabajara e os complexos de Jirau e Santo Antônio.

A CPT revelou que terras indígenas Karitiana, em Porto Velho, e Puruborá, no Vale do Guaporé, foram diretamente impactadas por agressores ambientais. 

O professor Afonso chama atenção para o caráter estrutural desses abusos. “Os corredores logísticos e as hidrelétricas se impõem como megaprojetos de fora para dentro. O que está em jogo é o território, não a eficiência energética”.

Advogado e integrante da Comissão Pastoral da Terra Welington Lamburgini apresenta o relatório de conflitos de 2024. (Foto: @ Francisco Costa - Voz da Terra)  

Trabalho escravo no setor pecuário

Segundo a CPT, houve duas ocorrências de trabalho escravo em áreas rurais em 2024, todas na zona rural de Porto Velho. Quatro trabalhadores, incluindo menores de idade, foram resgatados de fazendas de criação de gado bovino de corte situadas próximas a reservas extrativistas e terras indígenas. Os casos seguem a lógica já conhecida pela CPT: isolamento, precariedade extrema, e negação de direitos básicos.

A impunidade estrutural é reforçada pela fragilidade da fiscalização. A CPT apontou que a greve dos auditores fiscais do trabalho em 2024 reduziu a atuação do Estado. Para Afonso Chagas, “o trabalho escravo é a engrenagem oculta que movimenta o agronegócio competitivo. Sem salário, sem direitos, sem futuro”.

"A questão agrária é uma questão de política pública urgente, a única forma de garantir alimentos saudáveis para toda a população do campo e da cidade. Ademais, a questão ambiental, principalmente pelo modelo agrícola do agronegócio baseado no agrotóxicos em grandes quantidades e na monocultura tem agravado a contaminação e trazido doenças. A terra, presente de Deus, é para ser fonte de vida e não de doença como o agronegócio tem feito", explica Welington.

Contaminação por agrotóxicos e mineração

Outro dado preocupante é o aumento de 54% nos casos de contaminação por agrotóxicos entre 2023 e 2024 em Rondônia. Isso demonstra o risco a que estão expostos trabalhadores rurais, indígenas e ribeirinhos em territórios onde se expande o agronegócio.

Em paralelo, a CPT aponta 102 registros de contaminação por minério, especialmente em áreas próximas a garimpos ilegais. Mulheres foram alvo de pelo menos 35 ocorrências de intimidação, revelando também a face de gênero desses conflitos.

A resistência camponesa

Apesar da violência, os dados indicam que as populações rurais seguem resistindo. Em 2024, Rondônia teve 78 ocupações e retomadas, além de 10 novos acampamentos. 

Em todo o país, mais de 169 mil pessoas participaram de 649 manifestações de luta. O estado também registrou participação em atos contra a destruição ambiental e por demarcação de terras indígenas.

“Não se trata apenas de sobreviver. O que está em disputa é o direito de existir em comunidade, com dignidade, com identidade, com território”, afirmou Chagas.

Governança ausente, lucro presente

A lógica dos conflitos também se conecta diretamente à expansão dos corredores logísticos da Bacia do Rio Madeira.

O estudo “Projetos no Corredor Logístico da Bacia do Rio Madeira” do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental aponta que esses empreendimentos, financiados por grandes grupos do agronegócio e da mineração, ocorrem num contexto de “frágil governança ambiental”. 

As decisões são tomadas com base em pressões políticas e econômicas, sem consulta às populações afetadas e com riscos ambientais subdimensionados.

O documento da CPT expõe uma escalada de conflitos que não é pontual, mas estrutural. Os dados da Comissão falam de um estado marcado por um projeto de desenvolvimento político que avança sobre os direitos de quem mora, planta, pesca e luta na floresta. 

A denúncia feita pelos números precisa ser escutada, mas também enfrentada. Porque, como diz o professor Afonso Chagas, “sem justiça no campo, não há paz na cidade”.

"Os megaprojetos de infraestrutura na Amazônia rondoniense têm causado profundos impactos socioambientais às comunidades locais. A abertura de rodovias, a construção de hidrelétricas e o incentivo à mineração e à monocultura de commodities resultam, frequentemente, em desmatamento acelerado, perda de biodiversidade e degradação dos ecossistemas. Além disso, essas obras afetam diretamente povos indígenas e comunidades tradicionais, ameaçando seus territórios e modos de vida", declarou Gerry Carpaninini - articulador do Grupo de Trabalho de Infraestrutura e Justiça Socioambiental de Rondônia.

"A falta de transparência nos critérios de escolha dos projetos, a ausência de participação pública — incluindo a não realização da consulta livre, prévia e informada — e o subdimensionamento dos riscos sociais e ambientais são elementos recorrentes nesse modelo. Na prática, trata-se de um modelo que atende majoritariamente aos interesses de grandes produtores e à expansão do capital, sem compromisso real com a solução dos problemas enfrentados pelas comunidades atingidas", explica Gerry. 


Falas impactantes

Nelson, da comunidade Vila São João (Porto Velho) e do Observatório da Cidade, relembrou: “Tem uma ação de despejo tramitando na vara cível, que a pessoa comprou a área já sabendo que tinham posseiros morando na área. São 27 hectares que era do antigo território federal de Rondônia, e mesmo não podendo registrar usucapião, o juiz e o cartório registraram a área, e ainda criou uma nova área como se fosse legítima. De agora em diante, talvez somente Deus possa socorrer essas famílias, porque até o MP tem uma ação que ameaça despejar as famílias.”

Simão, da comunidade Jardim das Castanheiras (BR 364 / km 13, em Porto Velho), também relatou uma situação semelhante: “Moro na região há 28 anos, produzindo ali. Uma imobiliária vendeu pra mais de 100 pessoas, e a prefeitura de Porto Velho legalizou, mas até agora não fez a escritura pública, e fica jogando para o Incra, e o Incra voltando para a prefeitura. Estamos há 15 anos nessa luta, indo para a Defensoria Pública, o Incra e prefeitura.”

Lincoln Fernandes, da Resex Jaci-Paraná, destacou: “Nós também estamos neste caderno de conflitos junto com muitos outros moradores, e além de vivenciar esses conflitos há vários anos, também tem os casos de pessoas desaparecidas. Sabemos que não foi ataque de animais, porque conhecemos a região. Estamos com a esperança de que seja resolvida pacificamente esta situação. Em nome da comunidade, agradecemos em nome da comunidade essas pessoas que vem fazendo esse trabalho importantíssimo.”

Neia, da comunidade Triunfo (município de Candeias do Jamari) e da coordenação estadual do MAB, relata: “Há 15 anos que eu moro na comunidade, trabalhando na agricultura sem agrotóxicos, e de 3 anos pra cá não estamos mais conseguindo trabalhar por causa da pulverização de avião, prejudicando nossa alimentação e o pior, a nossa saúde. Tem companheiras que passam mal, que sangra os dentes, têm reação alérgica. Não temos apoio nem do posto de saúde, e esperamos reverter essa situação.” 

Ozana, cacica na Terra Indígena Puruborá, na região de Seringueiras, também reforça: “Somos donos dessa terra por direito, e hoje em dia vivemos ameaçados por tudo, na invasão dentro dos territórios indígenas pra a retirada de madeira, no garimpo ilegal e agora no veneno, que tira a vida de tudo e de todos, em cima da terra e dentro da terra. É proibido usar o veneno por avião, aí usam por drone, que é a mesma coisa. Vai pra nossa água, vai pra nossas frutas, adoece as crianças. O Estado não tem uma política publica legal para todos, porque se tivesse este atendimento, a gente não estaria aqui falando e reivindicando.”

Gabriela, da Associação de Chacareiras Apigu em Porto Velho, representa a comunidade na luta por regularização no seu território: “Os números dos conflitos não diminuíram, nós é que fomos calados com as nossas retiradas. Temos um agricultor que saiu da comunidade em janeiro, no tempo de férias da Justiça, mas mesmo assim fizeram uma reintegração de posse e agora o trabalhador está morando no galinheiro. Isto não é justo, nós queremos vida digna. Nós sofremos de abuso de autoridade nas nossas terras. Queremos que se resolva essa situação pra termos vida digna, cada morador com seu pedaço de chão, e seja respeitado quando tiver idoso. Nós já levamos alimento pra a cidade, e nós queremos isto. Meu esposo foi preso injustamente, sem conseguir provar inocência. Por isso não podemos dizer que está tudo bem. Estamos pedindo socorro, porque a qualquer momento a gente pode sair de nossas terras, por isso é importante lutar e resistir.”

Lenir Correira, advogada popular da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrap) e Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), apresentou algumas denúncias de comunidades e territórios acompanhados: “Este caderno traz algumas das histórias e alguns dos conflitos, porque a dimensão é muito maior. Temos vários advogados populars processados, perseguidos. Nestes 30 anos do massacre de Corumbiara (que nós chamamos de Batalha de Santa Elina), a diferença foi a resistência, porque senão o número de mortos seria muito maior. O atual presidente prometeu assentar as famílias nesta área, mas lá não foram ainda tomadas todas as terras. Aqui em Rondônia, precisamos denunciar o poder de polícia usurpando os ações dos processos judiciais. É a polícia fazendo reintegração de posse sem ter processo e mandato, e isso em ocupações e acampamentos de meses e até anos, como aconteceu Nova Esperança em Nova Brasilândia", disse. 

E acrescentou "Na área Gedeon José Duque, em Machadinho D’Oeste, uma ocupação de 2023, os camponeses ainda são ameaçados veladamente quando conseguem tentar fazer denúncia na delegacia. Outra situação é no Projeto de Assentamento São Francisco (em Porto Velho), que nunca teve assentamento de famílias nesta área. A polícia prendeu 26 camponeses agora em 11 de abril, um deles em seu lote, trabalhando e produzindo, com toda documentação de georreferenciamento, CAR e contrato de compra e venda. Alegando que ele era uma liderança, um policial com arma em punho, mas sem uniforme e identificação, o levou no próprio carro, e ainda colocaram uma tornozeleira no agricultor antes de ele ser solto, para que não possa voltar pra o seu sítio. O policial ainda voltou na sua terra, derrubou a sua casa, cortou a cerca, destruiu a ponte de acesso e colocou uma placa de monitoramento. E essas ações arbitrárias acontecem em todo o estado de Rondônia. Pra que gastar com pistoleiro, se o próprio Estado tem feito a própria pistolagem?", disse Lenir. 

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