STF deve julgar lei de Rondônia que perdoa crimes dentro da Reserva Extrativista de Jaci-Paraná

A Lei estimula criação de gado derrubando a floresta, pressiona seringueiros e transforma o meio ambiente em terra arrasada.
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Voz da Terra
20 maio 2025
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Gado na área desmatada ilegalmente na Reserva Extrativista de Jaci-Paraná, Rondônia, Brasil, 12 de julho de 2023. (AP Photo/Andre Penner, Arquivo)

Redação Voz da Terra - “Não se trata de regularizar o que está irregular, mas de legalizar um crime ambiental de três décadas.” A frase poderia ser de um ambientalista radical, mas está em uma ação judicial formalizada pela Procuradoria-Geral de Justiça de Rondônia.

A polêmica gira em torno da Lei Complementar Estadual n. 1.274/2025, aprovada pela Assembleia Legislativa do estado mesmo após veto do governador, e que tenta implementar o chamado PERAD-RO: Programa Estadual de Regularização Ambiental Diferenciado da Reserva Extrativista Jaci-Paraná. 

O VOZ DA TERRA teve acesso a todas ações judiciais que questionam a lei dos deputados. O caso será julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ministro Cristiano Zanim. Devem prestar informações, o governo e à Assembleia Legislativa do Estado. E sucessivamente, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República.

A reserva, criada em 1996 para proteger seringueiros e o extrativismo sustentável, virou pasto. Literalmente. Estima-se que hoje existam mais de 200 mil cabeças de gado dentro da unidade, que deveria estar sob rígida proteção ambiental.

Em 2014, o próprio governo reconheceu a gravidade da situação e expediu norma para retirada imediata dos animais da área — uma norma que nunca saiu do papel.

Apesar das decisões judiciais favoráveis à retirada dos invasores e das condenações contra o Estado por omissão, o Legislativo estadual escolheu outro caminho: criar uma nova lei para “resolver o problema”.

O PERAD-RO, no entanto, “perdoa os ocupantes”, “anula as multas ambientais”, “extingue ações civis públicas” e ainda autoriza o uso da área por mais 30 anos, mesmo sem regularização fundiária definitiva.

“É uma lei que joga no lixo três décadas de luta jurídica, ambiental e social pela preservação da floresta e das populações tradicionais”, critica o Ministério Público de Rondônia, que levou o caso ao Tribunal de Justiça, numa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 0805034-60.2025.8.22.0000) com pedido de liminar para suspender imediatamente a norma.

Mas o embate é mais profundo. A Procuradoria afirma que a lei invade competências exclusivas da União ao alterar o regime jurídico de uma Unidade de Conservação, violando o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) — que só permite uso da RESEX por comunidades extrativistas tradicionais.

O que o PERAD-RO faz, nas palavras do MP, é autorizar a permanência de “grileiros”, “pecuaristas” e “empresas que lucraram com a devastação”.

A decisão da Assembleia em derrubar o veto do governador e aprovar o texto teve repercussão nacional. O Partido Verde (PV) ajuizou uma ADI no Supremo Tribunal Federal sustentando que a lei estadual viola a Constituição Federal, ao promover “anistia ampla, geral e irrestrita” a crimes ambientais e agravar o já caótico cenário fundiário na região.

Na prática, o PERAD-RO busca converter a devastação em política pública. Nas palavras do Ministério Público, trata-se de uma “lei do boi”, que recompensa quem degradou a floresta com “papel passado e imunidade jurídica”.

Os verdadeiros donos da RESEX — os seringueiros e extrativistas que lhe deram nome — seguem invisíveis. Eles foram expulsos, calados e substituídos. O que era floresta virou pasto. E o que era reserva virou moeda de troca.

A pergunta que ecoa entre os que defendem a legalidade e a floresta é direta: “a quem interessa transformar crime ambiental em política de governo?”. A resposta está no processo — e no pasto.

Gado ilegal

A Procuradoria Geral do Estado (PGE) de Rondônia moveu 17 ações civis públicas contra diversos envolvidos na compra de gado da Resex de Jaci-Paraná, incluindo a JBS, uma das maiores empresas de processamento de carne do mundo. 

As ações apontam que a JBS comprou gado criado ilegalmente dentro da Resex. Guias de Trânsito Animal (GTAs), documentos que registram a movimentação de gado, indicam que animais saíram diretamente da reserva para os frigoríficos, o que é proibido por lei.

As ações judiciais buscam responsabilizar os envolvidos pelo desmatamento e exploração ilegal da área. A PGE pede indenizações que somam R$ 16,9 milhões por danos ambientais. 

Além disso, um laudo estima que seriam necessários mais de R$ 5 bilhões para recuperar os 151 mil hectares de pasto ilegalmente abertos na reserva. Muitos dos 778 invasores de terras identificados nunca foram processados.

Decisões judiciais já determinaram que invasores desocupem a área e retirem o gado. Frigoríficos como Frigon, Distriboi e Tangará também foram proibidos de adquirir gado proveniente da Resex. Em caso de descumprimento, estão sujeitos a multas significativas.

A JBS afirmou que não comenta processos judiciais em andamento e que não foi oficialmente citada. No entanto, as evidências apresentadas nas ações indicam uma conexão direta entre a empresa e a aquisição de gado de áreas protegidas.

No ano passado, a Justiça de Rondônia condenou dois frigoríficos — Distriboi e Frigorífico Irmãos Gonçalves — e três pessoas — ao pagamento de R$ 4,2 milhões por desmatamento e exploração ilegal de gado dentro da Reserva Extrativista Jaci-Paraná.

Desaparecidos

No dia 09 de maio deste ano, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou em Porto Velho, RO, o Caderno de Conflitos Agrários de 2024. O documento é um retrato do avanço do agronegócio e dos grandes empreendimentos de energia que estão fazendo pressão contra os povos tradicionais da floresta.

Uma liderança da Reserva Extrativista Jaci-Paraná disse durante o evento, que os moradores nativos da Resex estão desaparecendo. O líder levantou suspeita de que os extrativistas estão sendo mortos e os corpos sumindo.

“Nós também estamos neste caderno de conflitos junto com muitos outros moradores, e além de vivenciar esses conflitos há vários anos, também tem os casos de pessoas desaparecidas. Sabemos que não foi ataque de animais, porque conhecemos a região. Estamos com a esperança de que seja resolvida pacificamente esta situação. Em nome da comunidade, agradecemos em nome da comunidade essas pessoas que vem fazendo esse trabalho importantíssimo”, desabafou Lincoln Fernandes.


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