Redação Voz da Terra - Um relatório final da Polícia Federal revelou detalhes de uma operação de espionagem conduzida dentro da própria Agência Brasileira de Inteligência (Abin). O documento, tornado público pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), expõe o uso de tecnologias de rastreamento para monitorar ilegalmente políticos, policiais, jornalistas, advogados e até caminhoneiros.
A investigação identificou que mais de 30 pessoas participaram do esquema, que ficou conhecido como “Abin paralela”. Segundo a Polícia Federal, a estrutura da agência foi usada por aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro para atender interesses políticos e pessoais, fora das atribuições legais do órgão.
O método de vigilância incluía o uso de um software chamado “First Mile”, desenvolvido pela empresa israelense Cognyte, antiga Verint. A ferramenta permite localizar aparelhos celulares a partir de dados de GPS, mesmo sem autorização judicial. O governo brasileiro adquiriu essa tecnologia com a justificativa de reforçar o trabalho de inteligência, mas o sistema acabou sendo usado para fins de perseguição política e pessoal.
Entre os alvos estavam deputados, investigadores, juízes e servidores públicos. Jornalistas também sofreram monitoramento, ampliando o alcance do esquema ilegal. A divulgação do relatório levanta questionamentos sobre os limites e o controle das operações de inteligência no país.
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Abin usou tecnologia israelense para espionar. (© Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil) |
Alvos na comunicação
O programa também foi usado para monitorar jornalistas que atuavam investigando a atuação do governo e tentavam escancarar a existência do gabinete paralelo, como o caso da jornalista Luiza Alves Bandeira.
Outro jornalista monitorado, Pedro Cesar, virou alvo da Abin por ser um dos responsáveis pelo ato "Fora Bolsonaro".
A PF aponta ainda o monitoramento dos jornalistas Vera Magalhães, Luiza Bandeira, Pedro Batista, Reinaldo Azevedo e Alice Martins de Costa Maciel, da Agência Pública, que segundo os agentes é uma “jornalista left” responsável por fazer trabalhos investigativos.
Tecnologia de Israel para espionar
O First Mile é um software de espionagem de origem israelense, desenvolvido pela Cognyte (ex-Verint), que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) licitou em dezembro de 2018 por R$ 5,7 milhões, sem licitação pública.
O sistema foi utilizado até maio de 2021 e servia para rastrear localizações de celulares por meio das vulnerabilidades presentes nas redes 2G, 3G e 4G, explorando o protocolo SS7.
Funcionando como uma falsa antena, ele capturava a localização dos aparelhos a partir do número de telefone inserido no sistema. Assim, era possível localizar qualquer celular em tempo real sem autorização judicial ou envolvimento das operadoras.
Especialistas em cibersegurança classificam o First Mile como uma arma cibernética sofisticada, similar ao Pegasus, por permitir espionar civis com rapidez e discrição, sem autorização judicial ou registro formal – características que o colocam acima das ferramentas tradicionais utilizadas para investigação policial.
Manifestação
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) manifestou repudio "com veemência e considera estarrecedora a forma como a Abin foi utilizada, ilegalmente, para investigar, fustigar e tentar atingir a reputação de jornalistas e outras personalidades que tiveram postura crítica ao governo Bolsonaro."
Segue a nota:
"Em novembro de 2024, foi revelada uma investigação da Polícia Federal sobre a existência de uma estrutura dentro da Abin para perseguir opositores e jornalistas no governo Bolsonaro. Mas só agora, com o levantamento do sigilo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o relatório da PF, toma-se conhecimento de como estrutura, funcionários e ferramentas da Abin foram usados.
Uma perseguição que incluiu investigação ilegal e orquestração de campanhas de difamação e desinformação sobre os jornalistas e demais vítimas.
Como destacou a Polícia Federal no relatório, a chamada Abin paralela fez levantamentos e produziu informações “contra jornalistas críticos ou que investigavam a estrutura de difusão de desinformação do governo, sob ordens de 'futucar’, ‘explodir’, ‘focar’ ou aplicar ‘ferro’”.
O caso ainda está em apuração e não se sabe sua total extensão. Já foram divulgadas listas de nomes de jornalistas e veículos de comunicação que foram alvos, mas esse rol pode crescer e ser confirmado à medida que a apuração avança.
A Abraji se solidariza com esses profissionais e insta o Supremo Tribunal Federal a prosseguir com as investigações e com a responsabilização dos mandantes e agentes que causaram tal deformação do sistema de inteligência do Brasil. Não é admissível que cidadãos e cidadãs sejam monitorados e atacados por uma estrutura do Estado, em especial por realizarem o seu trabalho de investigar os poderes públicos.
Diretoria da Abraji, 19 de junho de 2025."
Violações aos jornalistas
O Brasil registrou uma queda de 33,1% nos casos de violência contra jornalistas em 2024, mas os números seguem altos e preocupantes para a liberdade de imprensa.
Segundo o Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa, divulgado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), foram 121 casos registrados ao longo do ano passado, contra 181 em 2023. A redução interrompe uma sequência de cinco anos de crescimento das agressões, mas ainda mantém o país em um patamar considerado crítico.
O Sudeste concentrou o maior número de ocorrências, com 41 casos, o equivalente a 33,8% do total nacional. São Paulo foi o estado com maior número de registros, com 18 episódios. Já a região Norte aparece em segundo lugar, com 27 casos, representando 22,3% das situações de violência.
Estados como Rondônia, Amazonas e Pará tiveram aumento proporcional nas ocorrências, especialmente envolvendo cobertura de temas ambientais, conflitos de terra e direitos indígenas.
No Sul, foram contabilizados 21 casos, com destaque para o Rio Grande do Sul, que concentrou a maior parte dos ataques na região. O Nordeste teve 19 casos, com Bahia e Pernambuco entre os estados mais afetados. No Centro-Oeste, o total foi de 13 ocorrências, sendo Mato Grosso o estado com mais registros.
Entre as formas de violência mais comuns, a descredibilização da imprensa liderou o ranking, com 35 casos. Em seguida, vieram as agressões físicas, com 29 registros, e as ameaças diretas, que somaram 22 ocorrências. Os ataques virtuais, incluindo perseguições nas redes sociais, também foram significativos, com 11 casos notificados.
O relatório também chama atenção para a violência institucional. Mesmo com a saída de Jair Bolsonaro da Presidência da República, o Estado brasileiro seguiu como agente de parte significativa dos ataques. Em 2024, agentes públicos foram responsáveis por 39,6% das ocorrências, com envolvimento frequente de policiais em atos de intimidação ou repressão durante manifestações e coberturas de protestos.
O perfil das vítimas aponta que mais de 60% eram homens. As mulheres representaram 35% dos casos, com aumento preocupante de episódios de violência de gênero.
O relatório destaca ainda que, apesar da redução geral, a cultura de hostilidade contra jornalistas segue presente, com especial incidência em estados da Amazônia Legal e nas grandes capitais do Sudeste, onde a pressão política e a tensão social seguem alimentando o cenário de risco para profissionais da comunicação.