Gado criado no assentamento Burareiro ,localizado dentro da Terra indígena (Divulgação)
Levantamento rastreou rebanho na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e calculou indenização por danos sociais, culturais e de saúde.
O rastreamento de rebanhos criados em fazendas ilegais dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, aponta para o fornecimento de carne da JBS aos supermercados do grupo Casino Guichard-Perrachon, gigante francesa que no Brasil controla Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper, e na Colômbia, o Éxito. O grupo enfrenta uma série de denúncias na Justiça francesa por manter em suas prateleiras produtos de áreas desmatadas na Amazônia.
As novas informações que ligam a cadeia de abastecimentos do grupo Casino com três fazendas estabelecidas dentro da terra indígena em Rondônia estão em documentos públicos do governo brasileiro e indicam que a rede adquiriu gado criado ilegalmente através de frigoríficos controlados pela JBS.
Os dados compõe parte de uma série de relatórios preparados pelo Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, na sigla em inglês).que investigou a origem do desmatamento e calculou os danos sociais, culturais e de saúde causados pela agropecuária extensiva dentro da terra indígena em Rondônia. O levantamento contabilizou um rebanho de 25.482 animais ilegalmente dentro da TI em uma área de mais de 13,4 mil hectares desmatados.
Um sumário executivo, apresentando os principais pontos destes relatórios, lançado nesta terça-feira, 31, em Paris, com a participação das lideranças indígenas brasileiras Alice Pataxó e Tejubi Uru-Eu-Wau-Wau. Os documentos serão entregues à Justiça francesa e juntados ao processo que já investiga o Grupo Casino sobre a venda de carne associada ao desmatamento e à violação dos direitos de povos tradicionais no Brasil e na Colômbia. A ação é movida por uma Coalizão de organizações brasileiras, francesas e colombianas, e busca responsabilizar o grupo francês por possíveis danos ambientais e violações de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil e na Colômbia.
O evento também terá uma sessão de pré-estreia do documentário “O Território”, produzido com ajuda de indígenas Uru-Eu-Wau-Wau e que mostra a saga desse povo pela defesa das suas terras e tradições.
“Eles [invasores] já estão a 4 quilômetros da nossa aldeia e avançando muito rápido. É uma situação urgente para nossos povos. Temos medo de que haja um conflito grande”.
O alerta do líder indígena Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, um dos personagens que conduz a narrativa do documentário e que contou a nossa reportagem como as fazendas de gado próximas das aldeias ameaçam o modo de vida tradicional e o território na terra indígena.
Será a primeira vez que a corte francesa deve julgar um caso com base no chamado “dever de vigilância”, lei instituída em 2017 e que exige monitoramento das cadeias produtivas das maiores empresas do país. Além disso, essas empresas estão obrigadas a publicarem um “plano de vigilância” para identificar riscos ligados a abusos de direitos humanos e ambientais.
Na primeira fase de investigação, o CCCA analisou o desmatamento na zona de abastecimento de três frigoríficos controlados pela companhia JBS no Brasil, fornecedora do grupo Casino, onde foi verificado desmatamento equivalente a cinco vezes o tamanho da cidade de Paris (50.000 hectares de floresta desmatada) na Amazônia. Em um segundo momento, a investigação se concentrou na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW) que tem sido desmatada para pecuária.
Os dados das Guias de Transporte Animal (GTA), que registram origem e destino do gado, e do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é autodeclaratório e registra propriedade, além de outras bases de informações, como o monitoramento do desmatamento, apontam que as áreas de pasto no interior da TI Uru-Eu-Wau-Wau que abasteceram a cadeia de suprimentos do Grupo Casino contribuíram diretamente no desmatamento de 5.686 hectares.
O relatório econômico, elaborado pelo Conservation Strategy Fund, a pedido do CCCA, calcula que o grupo francês provocou um dano material estimado em R$ 282,4 milhões aos povos Jupaú, Amondawa, Oro Win e indígenas em isolamento (54,3 milhões de euros). No entanto, os danos imateriais, que vão da perda demográfica, diminuição das chances de autodeterminação dos povos, diminuição dos serviços ecossistêmicos até o risco de extinção de grupos inteiros, podem ser ainda maiores.
Por outro lado, o benefício econômico gerado com a comercialização do rebanho ilegal estimado dentro da terra indígena, que é de 25.482 animais, alcança R$ 73 milhões, em valor bruto de mercado. Segundo as organizações, “o grupo Casino falhou com o dever de devida diligência” no monitoramento das cadeias produtivas que abastecem as lojas da rede.
“A compra de gado criado em áreas ilegalmente desmatadas e áreas de invasão em terras indígenas demonstra a inadequação dos sistemas de monitoramento da empresa com seus compromissos assumidos. Além disso, o estudo também mostra, através de análises econômicas, a ilógica relação entre a (economicamente mensurável) perda econômica associada ao desmatamento e os ganhos privados decorrentes da extração ilícita de recursos naturais”, diz trecho do sumário executivo apresentado às autoridades francesas.
Em 2021, a Terra Indígena Uru-eu-wau-wau foi a que mais sofreu com a pressão do desmatamento na Amazônia, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). A TI está localizada no estado de Rondônia, em uma área de 1.867.117 hectares, com uma população de cerca de 2.000 pessoas.
A TI UEWW está entre as terras indígenas mais desmatadas no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com mais de 20 mil hectares devastados. Entre agosto de 2020 e julho de 2021, foi a terra indígena da Amazônia legal que mais teve seu entorno desmatado, concentrado principalmente na região norte da terra indígena, onde a derrubada da floresta predominantemente tem como objetivo abertura de pasto para criação de gado.
Localizada em uma área que compreende cursos e cabeceiras de rios da bacia hidrográfica do Madeira (rios Jaciparaná, Candeias, Jamari, Jaru, Urupá, Muqui, São Miguel, Cautário, Pacaás Novos e Ouro Preto), a terra indígena teve as primeiras propostas de proteção apresentadas em 1946, quando foi registrada a presença de diferentes etnias naquela região. Em 1985 a área foi declarada de posse permanente dos indígenas e homologada em 1991.
No início de maio deste ano, os povos Amondawa e Jupaú, através da Associação Indígena Uru-eu-wau-wau, enviaram carta ao Ministério Público de Rondônia e ao Presidente da Funai denunciando a ausência de providências da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Uru-eu-wau-wau e da Coordenação Regional da Funai. No documento eles reclamam que os órgãos estão negligenciando a defesa dos direitos indígenas e dos indígenas isolados, colocando o território sob risco de invasões e mais desmatamento.
Ao InfoAmazonia, o Grupo Casino afirmou que mantém programas específicos para garantir o cumprimento de critérios socioambientais e que não comenta processos judiciais em andamento.
A JBS respondeu às denúncias alegando que a CCCA não apresenta detalhamento dos dados que confirmam o fornecimento de gado da terra indígena para os frigoríficos da rede. A JBS ainda informa que adotou “sistema de monitoramento via satélite” para o cumprimento de critérios socioambientais na aquisição de animais e que a empresa não tem acesso às Guias de Transporte Animal dos seus fornecedores (íntegra da resposta aqui).
Fazendas se aproximam das aldeias
É na região conhecida como Burareiro, onde há um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobreposto à terra indígena, que está um dos principais pontos de conflito da terra indígena. Nessa área, o desmatamento para abertura de fazendas de gado bateu recordes nos últimos anos. E a pressão de fazendeiros e grileiros fez com que os próprios indígenas assumissem a fiscalização do território diante da ausência dos órgãos de proteção indígena e ambiental.
“De uns anos pra cá a Funai não fez mais contato com a gente. Nós temos a presença de isolados em todo nosso território e eles não estão fazendo nada”, afirma Bitaté. Em abril de 2020, o líder e professor indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi brutalmente assassinado em Jaru, a 292 quilômetros de distância de Porto Velho, onde seu corpo foi encontrado com marcas de espancamento. Ari era atuante na fiscalização do território, mas até hoje ninguém foi responsabilizado pela morte.
“A última ação dele foi nessa área do Burareiro, onde a gente denunciou que os invasores estavam plantando capim em área desmatada de helicóptero”, conta Bitaté.
Povos isolados em risco
“Antes as coisas eram diferentes, não tínhamos serrarias aqui perto e não víamos tanta invasão. Mas tudo mudou de uns tempos pra cá”, diz Tambura Amondawa, liderança indígena da etnia que ocupa a porção sul da terra indígena onde a presença de povos isolados é maior.
“Tem uma semana que um grupo nosso encontrou novos sinais de invasão. O Ministério Público diz para procurarmos a Funai, mas eles não fazem nada”, emenda o indígena que vive na região sul da terra indígena, onde há confirmação de povos em isolamento voluntário.
Foi nessa região, que em 2020, o indigenista Rieli Franciscato acabou atingido por uma flechada fatal dos isolados denominados de Wyraparariquara. Franciscato era funcionário da Funai e há mais de 30 anos atuava na região para proteger o território com a presença dos isolados.
A morte do indigenista que tinha a confiança dos povos em contato pode reve o quão acuado os povos em isolamento vivem nessa região do território, onde o desmatamento e as invasões aumentaram nos últimos anos. Dois meses antes da morte de Franciscato, isolados foram avistados em casas que ficam na divisa com a terra indígena. Um relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), publicado em dezembro de 2020, apontou a necessidade de maior fiscalização nessa área da terra indígena e reativação dos postos de fiscalização da Funai, abandonados desde a morte de Franciscato.
“Essa é uma terra indígena com um longo histórico de muita violência e invasões. Ali temos grupos confirmadíssimos de povos isolados e que correm sérios riscos”, afirma Fabrício Amorim, do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato(OPI) e um dos autores do relatório da CNDH.
Amorin destaca que desde a morte do indigenista Rieli Franciscato, a Funai abandonou os indígenas e a TI UEWW à própria sorte. “A presença do Rieli de fato dava segurança aos indígenas e funcionava até certo ponto para fiscalizar as invasões e o desmatamento. A morte dele acontece em um momento de grande pressão dos invasores e o medo, agora, é que isso se intensifique ainda mais sem a presença dele por lá”, explica Amorim. (Info Amazônia)