— As redes sociais são os meios que temos para mostrar sobre nossas lutas e articular a presença dos nossos parentes em espaços políticos — diz Priscila, que, em abril, estava em Brasília junto com milhares de “parentes” durante o Acampamento Terra Livre (ATL) protestando contra projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional e podem levar riscos para as reservas.
Constituição de 1988
O Brasil atual observa o advento de uma geração de indígenas crescidos em meio a um novo cenário criado pela Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 225, conferiu aos povos nativos garantias antes inexistentes, como os direitos originários às terras tradicionalmente ocupadas por eles. São jovens que dividem com seus pais e avós a missão de defender essas reservas, fazendo uso das ferramentas digitais para denunciar invasões e promover a mobilização entre os povos em prol de campanhas virtuais ou manifestações presenciais.
Na última década, as redes sociais abrigaram cerca de dois milhões de posts sobre a causa indígena, gerando mais de 584 milhões de interações, segundo pesquisa da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV-Dapp).
Ao conectar as centenas de etnias espalhadas pelo território nacional, entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que aglutina organizações regionais de todo o país, vêm ganhando influência. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a legitimidade da Apib para propor ações de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs). Ano passado, advogados indígenas como Ivo Macuxi e Eloy Terena, ligados à Apib, apresentaram sustentações orais no início do julgamento do polêmico marco temporal, que deve ser retomado no próximo dia 23 pela Corte.
Há 15 anos, o povo Paiter-Suruí começava a informatização de suas aldeias, em Rondônia, após o contato com executivos do Google em busca de ajuda para monitorar queimadas na Amazônia. A iniciativa do cacique Almir Suruí influenciou a filha do requisitado ambientalista. Hoje, aos 25 anos, Txai Suruí fundou o Movimento da Juventude Indígena de Rondônia para disseminar, entre as 12 reservas do estado, a força da comunicação.
— É com a tecnologia que comunicamos ao mundo o quanto o garimpo polui os rios e devasta as florestas — explica Txai, que discursou na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), ano passado, na Escócia. — Hoje, atuo com mais de 120 jovens fazendo denúncias nas redes e organizando manifestações.
A divulgação de campanhas ocorre a partir da troca de informações entre cerca de 300 lideranças, ONGs e veículos de mídia independentes. De acordo com Txai, representantes de todo o país produzem vídeos, textos e fotos, sempre buscando auto-proteção e mobilização.
— A internet é um instrumento de luta para mostrar ao mundo o que significa ser indígena. Quando uma denúncia viraliza, ganhamos apoio da sociedade para que governantes tomem ações rápidas — explica a ativista, que tem 64 mil seguidores apenas no Instagram.
A pesquisa da FGV apontou uma presença mais expressiva de perfis de mulheres que atuam como lideranças nas plataformas. Mas todos os influenciadores agem em conjunto com as organizações (a Apib tem 200 mil seguidores no Instagram) para impactar o máximo de pessoas.
Segundo a pesquisadora Ivana Bentes, doutora em Comunicação pela UFRJ, apesar de o mundo digital estar geralmente mais associado à juventude, os mais velhos também têm participação efetiva no contexto dos povos originários.
— É um processo transgeracional. O cacique Mário Juruna ficou conhecido ao usar um gravador para registrar promessas de políticos nos anos 1970. Na década de 1990, projetos de produção de vídeos formaram inúmeros cineastas indígenas — afirma Ivana. — Esse ativismo cresce com a percepção de que não podemos pensar num projeto de país que exclua os povos originários.
Para Eliane Boroponepá, primeira mulher indígena doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), a articulação de povos nas redes quebra estereótipos, mas é necessário ocupar também as ruas e os espaços de poder.
— Os indígenas lutam pelos mesmos direitos dos não indígenas e, principalmente, contra uma concepção equivocada de que somos incapazes de liderar o debate — explica ela. — Há mais de 500 anos, estamos nos articulando para descolonizar pensamentos.
Durante a pandemia, a estudante de Biologia e artesã Samela Awiá, do povo Sateré-Mawé, do Amazonas, ganhou mais de 50 mil seguidores no Instagram. Divulgando vídeos e fotos sobre a cultura de sua gente e explicando ao público questões sensíveis como o garimpo e o marco temporal, ela se tornou uma das principais comunicadoras da Apib.
— Sair das aldeias era perigoso durante a pandemia, mas não podíamos ficar isolados. Precisávamos saber o que estava acontecendo no país e denunciar as mazelas que enfrentamos, também por conta da Covid-19 e da falta de vacinação. Com isso, o movimento indígena nas redes cresceu muito — conta a sateré-mawé. (O Globo)