Filme sobre a destruição de territórios indígenas em Rondônia, estreia no Brasil

Documentário parcialmente filmado pelos Uru-Eu-Wau-Wau mostra resistência contra invasões na Amazônia e conflitos crescentes.
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FRANCISCO COSTA
6 setembro 2022
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Premiado no exterior, o longa chega ao Brasil (Divulgação)

Marcando o mês em que se celebra o Dia da Amazônia, comemorado em 5 de setembro, estreia no Brasil o premiado documentário “O Território”, que mostra a luta do povo indígena Uru-Eu-Wau-Wau contra invasões na floresta. Vencedor de mais de dez prêmios internacionais, entre eles o Prêmio do Público e Prêmio Especial do Júri do prestigiado Festival Sundance de Cinema nos EUA, o documentário terá sessões especiais em 15 cidades do Brasil nesta segunda-feira, incluindo a mostra “Amazônia: Passado, Presente e Futuro” realizada pelo CineSesc e a O2 Filmes em São Paulo. A partir do dia 8, o filme dirigido por Alex Pritz entra na programação dos demais cinemas pelo país.

Produzido pelo cineasta Oscar Darren Aronofsky, e por Sigrid Dyekjær, Will N. Miller, Lizzie Gillett e o brasileiro Gabriel Uchida, o filme conta com produção executiva da ativista indígena Txai Suruí, que tem viajado o mundo para a divulgação da produção. “O cinema tem poder de ultrapassar fronteiras”, disse Txai em entrevista ao Um Só Planeta feita de Londres na última sexta-feira, onde estava para a pré-estreia no Reino Unido. “As pessoas saem emocionadas, tocadas pelo filme. A maioria sabe que a Amazônia enfrenta problemas e rivalidades, mas tem uma diferença quando você assiste o filme e entende de verdade o que significa o desmatamento, as queimadas, as invasões e o que vem acontecendo dentro das terras indígenas”, afirmou.

Com trilha sonora original de Katya Mihailova e edição de Carlos Rojas Felice, o filme foi parcialmente filmado pelo povo Uru-eu-wau-wau e traz imagens reais capturadas ao longo de três anos que mostram a luta incansável contra o desmatamento causado por posseiros, grileiros, garimpeiros e outros invasores de terras na Amazônia brasileira. A cinegrafia nos faz mergulhar na intimidade de uma floresta desconhecida para a maioria de nós.

Os Uru-eu-wau-wau já foram milhares num passado quando era possível “caminhar para sempre entre as árvores na floresta”, conta o ancião Warina Uru-Eu-Wau-Wau ao neto Bitate Uru-Eu-Wau-Wau, um dos jovens ativistas da aldeia que encontrou na câmera e no registro de histórias um meio para defender o território e a cultura do seu povo. Atualmente, restam menos de 200 indivíduos dos Uru-Eu-Wau-Wau, incluindo idosos e crianças, para defender quase 1.867,117 hectares de floresta tropical.

Coprodutor de “O Território”, o jornalista e cineasta paulistano Gabriel Uchida mora em Rondônia desde 2016 e seus trabalhos nos últimos anos têm sido realizados em parceria com indígenas. “Nós não conhecemos nada da história do Brasil e acho que um dos motivos para isso é que essa história nunca foi contada pelo lado deles. Quem bom que estamos começamos a ouvir mais vozes indígenas. Um dos nossos cineastas é o Tangan Uru-Eu-Wau-Wau, que também é professor indígena e cinegrafista. Quando ele pega a câmera ele traz um olhar e conhecimento próprio que nos ensina muito”, contou.

“Nós precisamos ser ouvidos, estamos onde estamos pois nunca fomos ouvidos no Brasil. Se isso tivesse acontecido, não estaríamos passando pelo que estamos passando”, acrescenta Txai. “Hoje, o mundo inteiro está falando de mudança do clima, e a Amazônia tem o poder de nos salvar, mas se perdermos a Amazônia, perderemos a guerra”. Para a ativista, cuja voz ecoou mundo a fora durante a cúpula do clima da ONU no ano passado, o filme é como um chamado para ação. "Depois que as pessoas assistem, uma das perguntas que mais fazem é: como posso ajudar a mudar o que está acontecendo lá?

Confira o trailer de "O Território":



Na linha de frente de resistência junto aos Uru-eu-wau-wau está a presidente da Associação Kanindé, indigenista, ativista, ambientalista e mãe de Txai Suruí, Ivaneide Cardozo, mais conhecida como Neidinha, que em uma das cenas confessa temer menos pela própria vida do que pela segurança de suas filhas e de seus amigos. “O filme mostra quem vem protegendo a floresta e mantendo-a em pé. A realidade não é fácil, nem preto no branco. Do outro lado, também tem pessoas, e o nosso papel era humanizar essas pessoas, para que todos pudessem entender como os problemas da Amazônia são complexos”, comenta Txai.

Segundo a ativista, o documentário busca sensibilizar o público pela dimensão humana da floresta. “Estamos falando de pessoas que possuem famílias, têm sonhos, alegrias e medos. O Ari era uma pessoa, que deixou filhos, que deixou esposa, que deixou mãe, que deixou as crianças que ele ensinava. Isso toca muito e faz diferença. Território mostra isso”, diz com a voz embargada ao lembrar do assassinato do líder e professor indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau em 2020, um dos momentos mais dramáticos do documentário

Realidade complexa

Contrariando narrativas dualísticas que tendem a dividir os problemas socioambientais entre forças antagônicas, o documentário foge à regra ao dar visibilidade a outros grupos. Nos limites do território indígena demarcado, uma rede de agricultores se organiza para alcançar suas reivindicações através de meios legais, enquanto grileiros começam a desmatar trechos de floresta tropical por conta própria. Sem narrador, a produção traz o relato direto de fontes distintas.

“A gente tenta trazer essa mensagem, para além do fogo e desmatamento, às vezes do outro lado tem um pequeno agricultor que não conhece outras perspectivas. Nós buscamos esse olhar mais pessoal e profundo e humano da situação, sem querer pintar o lado ruim e o lado bom, mas entender as diferentes perspectivas, os diferentes olhares”, pontua Uchida. “O filme mostra a complexidade das relações. E como são maiores do que imaginamos. A gente também vê que existem pessoas pobres que estão do outro lado e que também não estão ganhando com isso. Quem está ganhando com a devastação e os conflitos então? A gente traz essa reflexão”, complementa Txai.

Ao mesmo tempo, os Uru-eu-wau-wau assumem o controle da narrativa e criam sua própria equipe de mídia para contar ao mundo as ameaças que enfrentam. Mostram também como as ferramentas tecnológicas tornaram-se aliadas na luta de defesa do seu território em um momento em que órgãos federais responsáveis pela fiscalização estão mais fragilizados e com menos poder de ação. “Os novos guardiões digitais da Amazônia são a juventude indígena e essas ferramentas servem tanto para denunciar quanto para preservar nossa cultura também”, reforça a ativista.

“É muito comum quando as pessoas querem desqualificar os indígenas criticar que usamos iphone, quando na verdade o celular veio para somar, não diminuir nossas culturas. Mais do que isso, proteger nossos territórios. Nós usamos celular, drones, GPS, câmeras e redes sociais para proteger nosso território e também para decolonizar o olhar, para explicar, ensinar mesmo. Antes lutávamos com nossos arcos e flechas, depois passamos a usar papel e caneta e agora temos o celular e nossas câmeras como armas”.— Txai Suruí.

Cinema que dá potência

“Historicamente, os povos indígenas no Brasil sempre foram majoritariamente vistos com um olhar muito exotizante. Estou lendo um livro chamado Negros da Terra (Companhia das Letras), que mostra a ocupação e criação de São Paulo, com relatos sobre a participação indígena, um livro incrível, mas é absurdo como nunca aprendemos nada sobre isso na escola, de como os indígenas estavam presente não só na formação de São Paulo, mas no Brasil todo. Então, é muito importante eles estarem usando essas ferramentas para contar sua própria história e também como forma de defesa”, diz Gabriel.

O cineasta conta que nasceu em1986, mesmo ano que surgia o Vídeo nas Aldeias, um projeto pioneiro trazendo workshop de cinema para formação de cineastas indígenas em várias aldeias do país. “Nesse projeto, tem o Kamikia Kisêdjê, um cineasta indígena do Xingu que é incrível e com quem aprendemos muito. Hoje, tem uma série de outros ótimos cineastas, fotógrafos e comunicadores indígenas. Por exemplo, a Priscila Tapajowara e o próprio Bitaté que aparece no filme, que vai começar a faculdade de jornalismo”.

“O Território” já passou por mais de 70 festivais em todo o globo. “A gente está ultrapassando as fronteiras que nem imaginávamos com um filme sobre Amazônia feito por indígenas e que está alcançando o mundo inteiro”, comemora Txai, lamentando que ainda haja muitos estereótipos sobre os povos indígenas. “Em alguns festivais, as pessoas me viam com o cocar e achavam que eu estava no filme. Muitos se chocam em saber que eu sou produtora executiva do filme. Isso mostra o quanto ainda a indústria do cinema tem a ganhar com o novo olhar”, defende.

O filme está sendo traduzido para 40 idiomas. Os Uru-Eu -Wau–Wau falam Tupi -Kawahib, língua indígena que é falada também por outros povos do Amazonas e Rondônia. “Vamos traduzir para essa língua, mas também vamos dublar por que muitos dos mais velhos não sabem ler”, explica Gabriel. A equipe também está construindo um centro cultural e de mídia dentro da aldeia, com sala de edição, estúdio para podcasts e equipamentos para gravação. “Quando me perguntam qual o meu próximo projeto, digo que é assistir um filme que será produzido integralmente por eles, vou só ser público”.

Outro futuro possível

O filme estreia no Brasil há três semanas das eleições que terão cinco cargos em disputa: presidente da República, governador, senador, deputados políticos e deputados estaduais. Txai espera que a produção inspire as pessoas a refletirem sobre a importância de um poder legislativo mias plural. “Assim como falamos sobre o cinema, como queremos falar em mudanças se temos sempre os mesmos olhares, as mesmas pessoas decidindo sobre o nosso futuro?”, questiona a jovem.

“O movimento indígena nacional lançou campanha para aldear políticas e eleger a bancada do cocar, para que tenhamos representatividade no Brasil e um olhar diferente sobre o meio ambiente. Ter a floresta de pé é qualidade de vida, ter ar para respirar, ter água pura para beber, é frear as mudanças climática”, diz com firmeza. A esperança que tem com o filme, prossegue, não é contar uma história “que anuncia o fim do mundo”, mas uma história de mudança possível. “Revolução não se faz, se constrói. E é isso que estamos fazendo, buscando construir um lugar melhor para todo mundo”.

(Um só planeta)



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