Marcha “Basta de Violência”, durante o ATL 2022. (Foto: Hellen Loures/Cimi) |
Antes mesmo de ser eleito presidente, Jair Messias Bolsonaro prometia não demarcar um centímetro sequer de terra indígena. O discurso já era parte de seu plano de governo: agradar ruralistas e passar a tratorada por cima das árvores, do solo, da água, da vida dos povos originários. E, assim, ele segue cumprindo com a promessa ao longo desses – quase – quatro anos desastrosos.
Em Rondônia, um dos estados brasileiros dominados pelas cercas espinhosas do agronegócio, a situação não é diferente. Entre 2019 e 2022, sob o governo do Coronel Marcos Rocha (União) – aliado de Bolsonaro -, a floresta amazônica no estado foi devastada, ampliando, ainda mais, o “arco do desmatamento”. Consequentemente, os conflitos por terra foram intensificados, permitindo invasões em terras indígenas e em unidades de conservação.
Agora, em meio às eleições, o cenário é ainda pior. Temendo perder as mordomias presenteadas por Bolsonaro, fazendeiros e empresários tentam conquistar votos – da forma mais baixa possível – para a reeleição do candidato à presidência. Como parte da campanha, os ruralistas estão amedrontando os agricultores locais por meio do argumento de que perderão suas terras para os indígenas em caso de uma eventual vitória de Lula.
Esse movimento foi feito durante encontro realizado na noite do dia 8 de outubro, no Parque de Exposição de São Francisco de Guaporé (RO). Além disso, um vídeo – ao som de uma música perturbadora – passou a circular no WhatsApp dos moradores de Porto Murtinho (RO) e região. No vídeo, é possível conferir um mapa com uma grande área marcada na cor verde. E, acima, escrito: “você sabia que a maioria de vocês estão [sic] dentro dessa área que é de interesse da Funai que a esquerda promete virar reserva indígena?”.
“Como parte da campanha, os ruralistas estão amedrontando os agricultores locais por meio do argumento de que perderão suas terras para os indígenas”
Em seguida, fazem outros questionamentos: “Você acha que só perderão [sic] quem está dentro dessa área? Como ficará o preço de nossas terras com a formação dessa reserva? Você acha que se votar na esquerda a sua situação será diferente do seu vizinho que votou na direita?”. E, por último, uma ameaça: “Você vai pagar para ver? O risco é seu, mas também é meu. Pense”.
A área destacada no vídeo é o Vale do Guaporé, local que abarca os municípios de São Miguel, Seringueiras, São Francisco e Costa Marques – e onde, há décadas, os povos Puruborá, Migueleno e Kujubim travam uma luta pela demarcação de seus territórios.
Resposta aos ataques
No dia 14 de outubro, a Organização dos Povos Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso (OPIROMA) emitiu uma nota de repúdio em favor dos direitos originários dos povos indígenas Migueleno, Kujubim e Puruborá.
“A Organização dos Povos Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso – OPIROMA – vem a público repudiar os ataques racistas e anti-indígenas que incentivam o ódio discursado em palanque e em matérias veiculadas nas redes sociais, na tentativa de promover a criminalização e violência contra os povos indígenas Migueleno, Kujubim e Puruborá”, afirma um trecho da nota.
“A Organização dos Povos Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso – OPIROMA – vem a público repudiar os ataques racistas e anti-indígenas que incentivam o ódio”
A OPIROMA exigiu, ainda, que o Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal e a Justiça Eleitoral tomem as devidas providências para punir os responsáveis pela propagação das fake news, a fim de garantir proteção aos indígenas. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre outros movimentos e institutos que atuam em prol da causa indígena, também se solidarizaram com os povos Migueleno, Kujubim e Puruborá.
Ao Cimi, lideranças indígenas – todas terão a identidade preservada nesta matéria – falaram sobre a tensão vivida desde que apoiadores de Bolsonaro passaram a reproduzir informações falaciosas, jogando as populações dos municípios da região contra os povos originários e seus direitos.
Uma das lideranças disse que, de uma forma geral, o clima está “pesado”. “Aqui não pode falar sobre a escolha de voto, porque senão já cria discussão. O clima está muito pesado, é só briga entre os candidatos [Lula e Bolsonaro] e os apoiadores também. No território Migueleno houve até ameaça. Falaram [para um dos indígenas do povo] que se não votasse no Bolsonaro, iria perder o emprego. Além disso, agora mesmo iria ocorrer uma assembleia dos Migueleno. Mas deixaram de fazer em razão da pressão política. Ficaram com medo”.
“Falaram [para um dos indígenas do povo] que se não votasse no Bolsonaro, iria perder o emprego”
Outra liderança disse que a estratégia adotada pelos apoiadores de Bolsonaro tem a ver com o processo de demarcação do território. “A gente sabe que tudo isso é por causa do território, que não é demarcado e, assim, invadido por tudo quanto é gente que nos persegue, como os fazendeiros, criadores de gado e plantadores de soja, café, arroz e milho”.
“Eles [ruralistas] querem de qualquer jeito que o Bolsonaro ganhe, porque a política dele é de não demarcar nenhum centímetro de terra indígena, como ele mesmo fala. É a sua jogada para ganhar. Eles não respeitam as terras indígenas, estão invadindo o nosso espaço, que ainda aguarda demarcação”.
Denúncia ao MPF
Logo após tomarem conhecimento do vídeo, lideranças dos povos Puruborá, Migueleno, Kujubim e Macurape, do distrito de Porto Murtinho – localizado no município de São Francisco do Guaporé (RO) -, fizeram uma denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) em Rondônia.
“Estamos temendo por nossas vidas, pois esse vídeo foi divulgado nas redes sociais, viralizando rapidamente. Antes dessa publicação, já havia uma discriminação e preconceito. E, agora, ficou mais intenso, criando um ambiente de ódio. Exigimos que a Justiça descubra quem criou e fez a publicação desse vídeo e que a justiça seja feita, sendo assim tomadas as medidas cabíveis”, diz um trecho do documento.
“Antes dessa publicação, já havia uma discriminação e preconceito. E, agora, ficou mais intenso, criando um ambiente de ódio”
Em apoio aos indígenas, o Cimi também protocolou um documento no Ministério Público Federal em Rondônia e na Sexta Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal na última quarta-feira – 19 de outubro de 2022. Logo no início do texto, a entidade solicita “especial atenção e providências desta 6ª Câmara em relação aos fatos noticiados na Carta dos povos Migueleno, Kujubim e Puruborá”.
“A divulgação desse vídeo, associado a uma série de outras campanhas de desinformação, tem promovido, segundo relatado por indígenas e missionários deste Conselho, um terror nos moradores locais e, consequentemente, a aversão e animosidade na convivência entre não-índios com as comunidades indígenas locais”, diz um trecho do documento.
“As populações indígenas temem por suas vidas e deixaram de realizar suas atividades coletivas com medo de retaliações”
“As populações indígenas temem por suas vidas e deixaram de realizar suas atividades coletivas com medo de retaliações. Este fato, além de impactar no modo de vida dos povos tradicionais, coloca em risco também o desenvolvimento de eventuais atividades de servidores da Funai no desempenho de suas funções institucionais, bem como o livre exercício do voto no processo eleitoral em curso”, completa.
GT na Funai
Os territórios requisitados pelos Migueleno, Puruborá e Kujubim ainda aguardam a devida demarcação. Dos três povos, os Puruborá e os Migueleno possuem Grupo de Trabalho (GT) criado para estudo de áreas etno-histórica, antropológica, cartográfica e ambiental, na Fundação Nacional do Índio (Funai) – Portaria Funai 469, de 25 de janeiro de 2022 (Puruborá) e Portaria Funai 439, de 1 de dezembro de 2021 (Migueleno).
Os dois povos tiveram seus grupos criados recentemente por determinação judicial, após ações civis públicas no MPF em Rondônia as quais solicitam a continuidade dos processos.
Mas vale lembrar que, há mais de dez anos, tanto os Puruborá quanto os Migueleno tentam instituir um Grupo de Trabalho na expectativa de garantir os seus territórios demarcados e os direitos garantidos. A morosidade escancara não só a falta de prioridade de demarcar as terras indígenas, mas também o desmonte da Funai ao longo dos últimos quatro anos.
Enfrentamento
Logo após a criação do GT dos Puruborá, no começo deste ano, o senador – e atual candidato ao governo de Rondônia – Marcos Rogério (PL) subiu no púlpito do plenário do Senado Federal para se posicionar sobre o caso. Além disso, ele não escondeu a sua vontade de aprovar, o quanto antes, a tese do marco temporal.
“Nos últimos tempos, o judiciário tem se debruçado sobre o tema das demarcações das terras indígenas. Estão em curso ações civis públicas em vários foros no Brasil. Mas, por conta do crescente ativismo judicial, a questão é politizada além da conta. Na minha avaliação, não há o que politizar. A Constituição Federal é clara e deve ser seguida a tese do marco temporal”, afirmou o senador.
“Não há o que inventar. Basta seguir a Constituição Federal. Contudo, diante de toda a questão política que envolve o tema, já recebo relatos do meu estado de Rondônia de que a Funai, por força de determinação judicial, publicou a portaria 469, de 25 de janeiro de 2022, em que constitui Grupo de Trabalho visando realizar estudos multidisciplinares da área reivindicada pelos Puruborá, dos municípios de Seringueiras e São Francisco. Veja que a realização de tais estudos gera enorme insegurança jurídica. As pessoas do campo poderão perder o direito de propriedade e fonte de sustento”, completou – com informações falaciosas.
Entenda: marco temporal
O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.