Manifestação em frente à Funai, em Manaus. Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real |
“Queremos ajuda, pois queremos viver. Toda a vida que habita a floresta é importante e defenderemos nossos irmãos e irmãs sempre. Seguiremos fortes até o fim”. Assim finaliza a Carta Aberta escrita pelos povos indígenas da Terra Indígena (TI) Vale do Javari. A carta é um pedido de socorro pois suas vidas vêm sendo constantemente ameaçadas.
Divulgado pela imprensa e redes sociais nos últimos dias, a Carta da Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), datada do dia 17 de novembro, relata uma suntuosa investida contra a vida das pessoas por parte de invasores que saqueiam o território indígena.
De acordo com o relato, a abordagem dos invasores contra os Kanamari aconteceu no dia 09 de novembro. Os Kanamari compunham um grupo de, aproximadamente, 30 indígenas, entre eles muitas mulheres e crianças, que retornavam de um encontro na aldeia Massapê, no rio Itacoaí. Ao passarem por uma embarcação de pescadores não indígenas, logo perceberam que estavam saqueando o território, pois a embarcação estava cheia de quelônios, caça e peixes.
Uma das lideranças recebeu proposta de suborno para que não fossem denunciados. “Na conversa, os pescadores tentaram convencer o parente Kanamari a não denunciar a situação, oferecendo tracajás como pagamento pelo silêncio”. Outra liderança, ao questionar os motivos da insistência em invadirem o território, foi ameaçada. O invasor apontou a espingarda para seu peito e disse, claramente, que todas as lideranças iriam ter o mesmo fim do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. “Vou tirar a máscara para você ver meu rosto e te avisar que por conta de atitudes assim que Bruno e Dom foram mortos pela nossa equipe e você será a próxima”, relata a liderança ameaçada na Carta.
Não identificada por questões de segurança, a liderança concedeu entrevista ao site Amazônia Real, e disse que as invasões não cessaram. As conclusões oficiais do caso dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, em junho desse ano, não trouxeram amparo ou proteção aos indígenas, muito menos, resolução para o caso. “Vou te falar uma coisa. Não adiantou a gente fazer manifestação. Não adiantou trazer equipe grande [de autoridades] no auditório da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Foi tudo temporário. As invasões continuam”, desabafa a liderança.
Em outra reportagem do Amazônia Real, cujo conteúdo informa que a Ordem dos Advogados do Brasil no Amazonas pretende levar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, outra liderança disse sofrer ameaças há meses. Afirma também que depois que “Colômbia” – suposto mandante do duplo assassinato – foi liberado da cadeia, os invasores se sentiram encorajados para fazer abordagens ainda mais hostis. “Após a soltura de Rubens Villar Coelho, conhecido como ‘Colômbia’, os pescadores passaram a ficar mais “agressivos” e voltaram a invadir a TI Vale do Javari. Segundo a liderança, “essa foi a primeira vez, depois da morte do Bruno e do Dom, que um pescador teve coragem de chegar na gente assim”, revela a liderança na matéria.
Os indígenas da região relatam, incansavelmente, as situações de violência que vivem. Eles alertam sobre o risco que correm de serem assassinados a qualquer momento por grupos de invasores clandestinos, que adentram a floresta atrás de recursos naturais, principalmente, madeira, caça e pesca. Somado a isso, há a intimidação de narcotraficantes que mantém abertamente suas atividades do lado peruano – a TI Vale do Javari faz fronteira com Peru.
Só esse ano foram feitas ao menos três denúncias a órgãos responsáveis pela proteção dos territórios e vidas indígenas, uma resposta à Polícia Federal (PF), datada de 17 de junho que no decorrer das investigações sobre o assassinato de Bruno e Dom Phillips, desconsiderou “as informações qualificadas, oferecidas pela Univaja em inúmeros ofícios, desde o segundo semestre de 2021”; e uma resposta ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, em 20 de junho, que havia tipificado os assassinos de “apenas ribeirinhos que têm uma vida dura” e opinou que o assassinato deve ter ocorrido “em meio à embriaguez de final de semana”, desprezando os esforços das lideranças e da Univaja.
Em 2021, a organização indígena implementou a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), para realizar a autoproteção do território, pois o descaso já existia e era crescente a vulnerabilidade vivida por essas pessoas. O crime hediondo cometido contra o jornalista e o indigenista comprovam a negligência do atual governo na proteção do território e dos povos indígenas do Vale do Javari.
Os documentos e ofícios produzidos pela EVU desde 2021, “apontam a existência de um grupo criminoso organizado atuando nas invasões constantes à TI Vale do Javari, do qual ‘Pelado’ e ‘Do Santo’ fazem parte”. Esse grupo é de caçadores e pescadores profissionais envolvidos no assassinato de Pereira e Phillips. Enviados ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal e à Fundação Nacional do Índio (Funai), os ofícios trazem descrição detalhada e fundamentada sobre as estratégias e ação dos criminosos. “Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais”.
A Carta de 17 de novembro é mais uma a ser registrada na Polícia Federal e apresentada a todos os órgãos governamentais responsáveis pela proteção ambiental, territorial e da vida dos povos indígenas da região. Se o descaso continuar, se o Estado brasileiro continuar negligente com a vida dos povos indígenas na região, mais assassinatos ocorrerão.
Compreender para agir
Na busca por compreender a conjuntura de violências da região do Vale do Javari, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns e a Rede Liberdade, produziram o relatório “Graves Violações de Direitos Humanos no Vale do Javari”, em setembro desse ano.
O objetivo do documento foi “fundamentar e sugerir recomendações para subsidiar o Grupo de Trabalho nomeado pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, a respeito do tema, nos termos da Portaria nº 228 do CNJ de 22 de Junho de 2022”.
As entidades demonstram preocupação com a sobrevivência dos povos indígenas na região, especialmente, com os povos indígenas em isolamento voluntário. A TI Vale do Javari possui o maior contingente de povos isolados no mundo. As organizações descrevem em mais de 70 páginas e documentam em outras 500, a história e o contexto de violências que sofrem aqueles povos.
“O atual cenário aponta para um quadro de ofensa sistemática dos direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas da região, violando seus direitos à alimentação, à sobrevivência material e cultural e, sobretudo, exerce pressões sobre os povos isolados, que são empurrados ao contato involuntário, gerando-lhes mais riscos e mais conflitos em uma região já tão conflagrada”, informa o relatório. O documento aponta ainda que o contexto de violência e violação dos direitos humanos na região é persistente, ignorado pelo poder público e articulado pelo narcotráfico e agentes de ilícitos ambientais.
Tal diagnóstico além de corroborar com os incansáveis alertas dos indígenas da região, é mais um incontestável documento que comprova que a negligência do poder público torna os fatos que se repetem no Vale do Javari em “verdadeiras tragédias anunciadas”.
“Há no Vale do Javari um contexto de violência conhecido e há tempos ignorado pelo Poder Público. Marcada pela atuação do crime organizado, a região tem vivido um agravamento da situação a partir da articulação do narcotráfico com ilícitos ambientais como a pesca, a caça, o garimpo e a extração de madeira. (…) O potencial lesivo destes episódios tem se desenvolvido com a ausência de meios protetivos às vítimas, resultado da piora em deficiências históricas da FUNAI. O contexto tornava altamente previsíveis – verdadeiras tragédias anunciadas – episódios como o assassinato de Bruno e Dom”.
Havia uma esperança de que as investidas contra os indígenas e seus territórios tivessem uma arrefecida queda, após o terrível acontecimento e toda sua repercussão. No entanto, o encorajamento pela impunidade com a soltura de ‘Colômbia’ e o descaso do atual governo, expresso no sucateamento dos órgãos de proteção, favoreceu a ousadia dos invasores e a continuidade das ameaças, as quais se revelam cada vez mais ostensivas.
Toda essa configuração tem afetado, substancialmente, a vida dos indígenas na região, que andam e navegam inseguros e amedrontados com o que pode lhes acontecer. A liderança ameaçada no último dia 09 de novembro declarou: “Eu não estou andando na rua sozinha. Outro dia tentei sair para comprar um churrasquinho e tinha um bocado de homens e mulheres por lá que começaram a falar coisas horríveis pra mim, me xingaram e ameaçaram”.
Apesar de tudo, a liderança está convicta de que não pode parar de denunciar. “Cheguei à conclusão que eu não posso ficar de braço cruzado [diante da situação de ameaças]. Eles moram perto na minha casa aqui em Atalaia, nós somos muitas mulheres e crianças lá em casa. Eu estou com muito medo, mas, se ficar quieta, como será nossa vida depois? Sempre dependente deles? ”, indaga, apreensiva.
Recomendações que apontam para uma resolução
O relatório da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns e da Rede Liberdade, além de levantar informações estruturantes do contexto da região Vale do Javari, “dada a ampla repercussão do episódio” [ do homicídio de Bruno e Dom], também teve o objetivo de “propor medidas que visem aprimorar a atuação do poder judiciário nas questões relacionadas ao caso”.
Para além da atuação do poder judiciário, as autoras do relatório se debruçaram sobre os “diversos documentos, entrevistas com lideranças, ativistas, jornalistas, juízes e acadêmicos que trouxeram um mosaico de informações que permitiram a elaboração das recomendações”. O documento traz também indicações para outros poderes constituídos e seus órgãos técnicos.
“Como a questão de violência estrutural na região da Amazônia legal é muito mais ampla que os temas que afetam exclusivamente os sistemas de justiça, algumas das recomendações feitas neste Relatório se endereçam a outros atores institucionais que têm papéis igualmente importantes na formulação de possibilidades e de soluções para a região”.
A constatação de que as políticas de Estado, de defesa da vida dos povos originários e seus territórios são eficientes, funcionam e alcançam objetivos e resultados, está relatada no Relatório. Se por um lado, os dados históricos apresentam uma região dominada pelo crime organizado e ilícitos ambientais na ausência do Estado, por outro constata-se um arrefecimento das ações dos criminosos quando o Estado atua de forma coordenada.
“Para enfrentar o alto grau de invasão dos territórios, a Funai criou, em junho de 1992, entre os rios Ituí e Itaqui, uma base de proteção móvel. A atuação na região se consolidou em 1996 com a criação da Frente de Contato Vale do Javari, no contexto de contato com um pequeno grupo Korubo, até então isolado. Essa Frente foi renomeada para Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ) após a conclusão da demarcação em 2001. Sob a FPEVJ eventualmente viriam a operar quatro Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs): Ituí-Itaquaí, Figueiredo, Jandiatuba e Korubo. Enquanto isso, uma quinta BAPE, a Base Curuçá, opera sob a responsabilidade da Coordenação Regional do Vale do Javari (CRVJ), com apoio da FPEVJ”, registra o diagnóstico, destacando que a Funai não atuava sozinha, mas em articulação com outros órgãos de proteção.
A Funai atuava “em coordenação com outros órgãos estatais, com destaque para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Polícia Federal (PF)”. Em 1996, o Ibama apreendeu “mais de 21 mil metros cúbicos de madeira extraída ilegalmente, incluindo mogno, cedro e jacareúba”.
Segundo o Relatório, lideranças da UNIVAJA afirmam essa eficiência quando há interesse político em fazer a proteção territorial. “Na época era uma atuação do Estado brasileiro de forma contundente, (…) e que isso proporcionou durante décadas a proteção dos recursos naturais”, afirmou um dos entrevistados ligados à Univaja.
Diante dessas evidências de que as tragédias podem ser evitadas ao invés de anunciadas, a Comissão Arns e a Rede Liberdade elencam uma série de recomendações ao poder público em suas diferentes instâncias: “[O Relatório] articula recomendações de ação ao Poder Público, mirando especialmente o Poder Judiciário, sem se furtar a eventualmente se debruçar sobre outros órgãos ou instituições”, diz o documento que segue os “termos da Portaria 228 do Conselho Nacional da Justiça de 21 de Junho de 2022 e lembra “a necessidade de interação do Poder Judiciário com outros órgãos, entidades e organizações, de caráter nacional e internacional…”.
Assim, a prioridade das recomendações está na atuação do poder judiciário, especialmente do CNJ no caso do assassinato de Bruno e Dom, mas amplia-se para “indicativos que possam contribuir para interromper o contexto mais geral de violência estrutural”.
Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as recomendações do Relatório sobre as Violações de Direitos dos Povos Indígenas do Vale do Javari apresentam-se como importantes caminhos para a resolução dos problemas que a região enfrenta e, também, para que o Vale do Javari se descaracterize como uma região de violências e violações de direitos e passe a ser conhecida pelo potencial de respeito à vida e aos direitos dos povos originários.
O Cimi manifesta seu apoio incondicional às ações que o movimento indígena da região estabelece e realiza, e também presta sua solidariedade às lideranças indígenas do Vale do Javari que se encontram em situação de violação de direitos e de ameaças.