Nestlé compra colágeno de gado criado em áreas desmatadas no Brasil

Marca tem a atriz norte-americana Jennifer Aniston como garota-propaganda e diretora criativa
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FRANCISCO COSTA
16 março 2023
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O cheiro ruim anuncia a proximidade dos caminhões. Eles estão carregados de peles, que foram retiradas de carcaças de gado abatido dias antes. Moscas seguem os veículos, provavelmente atraídas pelo forte odor enjoativo e pelo líquido putrefato que goteja pelas frestas dos automóveis não climatizados.

A cena não é bonita. Tampouco parece ser a vida dos moradores do bairro semi-industrial de Arcadas, em Amparo, no estado de São Paulo. É para lá que os caminhões seguem – e onde o odor de carcaça deteriorada se transforma em um muito mais disperso cheiro nauseante de pele de animal cozida. 

Isso porque opera no bairro a fábrica da Rousselot, uma empresa pertencente à norte-americana Darling Ingredients, e que é especialista na extração de gelatina e colágeno, que podem ser obtidos em peixes, porcos e bovinos. A proteína, que se tornou peça fundamental de suplementos de saúde, está no coração de uma verdadeira febre de promessas para uma vida saudável. 

Enquanto seus consumidores mais fiéis clamam pelos benefícios da proteína na melhora do cabelo, da pele, das unhas e das articulações, ou mesmo em retardar o processo de envelhecimento, a substância tem um efeito duvidoso na saúde do planeta. Por trás da popular versão “bovina” do colágeno, existe uma indústria pouco transparente que impulsiona o desmatamento e alimenta a violência contra populações indígenas na Amazônia e no Cerrado.

Uma investigação conduzida em parceria por O Joio e O Trigo com The Bureau of Investigative Journalism, com o jornal britânico The Guardian e com a também britânica rede televisiva ITV revela que dezenas de milhares de cabeças de gado criadas em fazendas envolvidas em desmatamento da Amazônia e do Cerrado foram abatidas em grandes frigoríficos ligados à cadeia internacional de colágeno.

Nossa investigação conseguiu rastrear o caminho de parte deste colágeno até a multinacional suíça Nestlé, que comercializa a proteína pela marca Vital Proteins, um fenômeno de vendas que conta com a atriz Jennifer Aniston como diretora criativa e garota-propaganda. No Brasil, a Vital Proteins é vendida em diversas farmácias e pode ser encontrada com facilidade. Mundo afora, pode ser comprada online, pela Amazon, e em supermercados como Walmart e Costco nos Estados Unidos, e Holland & Barrett e Boots no Reino Unido.

Esta é a primeira grande reportagem a conectar a produção de colágeno bovino com desmatamento da Amazônia e do Cerrado e violência contra povos indígenas. Nossa investigação, em parceria com a organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA), encontrou pelo menos 2.600 km² de desmatamento desde 2008 ligados à cadeia de suprimentos de duas empresas localizadas em território brasileiro com conexões com a norte-americana Darling: a já mencionada Rousselot e a Gelnex, em processo de aquisição pela empresa. 

De acordo com a análise realizada em parceria com o CCCA, a maior parte dos casos analisados são de fornecedores indiretos dos abatedouros da JBS, em Marabá, no Pará, e em Araguaína, no Tocantins, e da Minerva no mesmo município. A maior parte das fazendas fornecedoras envolvidas em desmatamento estão localizadas nos estados do Pará e no Tocantins, incluindo municípios visitados pela reportagem, como Marabá e Bom Jesus do Tocantins.  

Ainda não está claro o percentual exato de colágeno produzido no Brasil e destinado à Vital Proteins. O que se sabe é que a Nestlé, e sua marca Vital Proteins, compram colágeno da Darling Ingredients, cuja empresa no Brasil, a Rousselot, compra parte de sua matéria-prima da Marfrig. 

Em setembro de 2022, o Joio, em parceria com o The Bureau of Investigative Journalism e o The Guardian, publicou uma investigação inédita, que aponta que uma fazenda dentro de território reivindicado pelo povo indígena Mỹky, no Norte do estado do Mato Grosso, forneceu gado para abatedouros da Marfrig listados como fornecedores da Nestlé pela multinacional suíça.

Fornecimento responsável?

A Darling Ingredients disse à reportagem que a empresa e sua subsidiária Rousselot monitoram seus fornecedores, e removem aqueles que não atendem aos critérios de fornecimento responsável. Um porta-voz acrescentou ainda que as empresas “desempenham um papel crucial” na “coleta e reaproveitamento de subprodutos animais que, de outra forma, seriam descartados”.

Ele também disse que não poderia comentar sobre a Gelnex, já que a aquisição, ocorrida em outubro de 2022, ainda não foi finalizada. A Darling ofereceu 1,2 bilhão de dólares pela compra de todas as ações da Gelnex no ano passado.

Em uma recente chamada com investidores, o CEO da Darling Ingredients, Randall C Stuewe, disse que a aquisição da Gelnex aumentaria enormemente a produção de colágeno da empresa. A previsão é que o colágeno da Gelnex integre a cadeia da Darling Ingredients na segunda metade deste ano.

A Gelnex vende colágeno para produtos de saúde, ingredientes alimentícios e outros fabricantes em todo o mundo, incluindo mercados na Austrália, Nova Zelândia e Rússia. Muitas vezes para produtos de marca própria. 

A reportagem foi até a sede da empresa, em Araguaína, no Norte do Tocantins, para entender a cadeia de suprimentos da Gelnex. A empresa obtém matérias-primas da Durlicouros, um fabricante de couro localizado na cidade vizinha de Wanderlândia, que limpa as peles e as prepara para a produção de couro. Nesta fase, para evitar que as peles cruas apodreçam antes de serem processadas, elas são frequentemente tratadas com alvejante ou outros produtos químicos. Apesar do tratamento químico, foi justamente o cheiro forte que permitiu a reportagem literalmente farejar os caminhões chegando até a fábrica da Gelnex, e daí entender sua procedência.

A Durlicouros, por sua vez, obtém as peles de gado dos abatedouros da JBS e da Minerva, de acordo com várias entrevistas com caminhoneiros e outras fontes locais.

Centenas desses animais são criados em fazendas que pressionam a Terra Indígena Mãe Maria, no sudeste do Pará, e invadem outras terras indígenas.

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