Por Rodolfo Jacarandá
O número de armas ilegais vem aumentando sistematicamente na Amazônia – o cenário é pior em Rondônia e no Acre. De acordo com o mais recente Atlas da Violência, depois do Mato Grosso (26,7%), Acre e Rondônia tiveram o maior aumento nacional de homicídios causados por armas de fogo entre 2021 e 2022. O Acre ficou na segunda posição, com 19,5% e Rondônia em terceiro, com 13,5%1.
Especialistas apontam que a flexibilização do acesso a armas de fogo promovida pelo governo federal nos últimos anos pode estar abastecendo o crime organizado.
Recentemente, uma auditoria do Tribunal de Contas da União apresentou dados preocupantes sobre o assunto. A auditoria descobriu que até 8% das armas registradas em mãos de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores – CAC haviam sido desviadas.
Os dados não permitem saber quantas armas desviadas (roubo, furto ou extravio) foram intencionalmente repassadas para criminosos. Ou seja, se fornecedores legais ou mesmo os proprietários das armas negociaram com o crime.
Mas, o TCU também concluiu que o Exército é incapaz de fornecer dados confiáveis de vistorias e fiscalizações de CACs e de entidades de tiro. O relatório apontou ainda fragilidades graves na comprovação de idoneidade de requerentes e concluiu que o sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições (Sicovem) é de baixa confiabilidade.
Na mesma direção, investigações policiais por todo o país começam a revelar um número crescente dessas armas nas mãos de grupos criminosos muito bem organizados. Na Amazônia, o aumento de armas ilegais levou o estado de Rondônia à liderança do ranking nacional de apreensões em 2022.
Operações investigam desvio de armas para organizações criminosas
Em maio de 2024, pelo menos duas grandes operações da Polícia Federal para investigar a venda de armas de CAC’s para membros de facções criminosas dominaram o noticiário. As investigações apontam ainda a participação de empresários e policiais militares no fornecimento dessas armas para criminosos.
Entre os crimes praticados estão grandes assaltos, com alto poder de fogo, em cidades espalhadas por todo o país. Em um dos casos de maior repercussão, em Araçatuba/SP, em agosto de 2021, os bandidos controlaram toda uma região central da cidade e chegaram a utilizar cidadãos como reféns sobre o teto e o capô de veículos de fuga.
As autoridades suspeitam que armas de CACs têm sido sistematicamente desviadas para armar grupos altamente perigosos, incluindo aqueles praticam o que vem sendo chamado de “novo cangaço” e “domínio da cidade”. Esses seriam crimes cometidos por quadrilhas fortemente armadas que invadem pequenas cidades para assaltar bancos e transportadoras de valores.
Desvio de armas de CACs é maior na Amazônia Ocidental
Um levantamento divulgado em maio de 2024 pelo Instituto Sou da Paz, do Rio de Janeiro, com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, revelou que os desvios de armas de fogo provenientes de CACs aumentaram, em média, 68% entre 2018 e 2023. O instituto obteve dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA), controlado pelo Exército Brasileiro.
Esse estudo mostrou que a região militar que compreende os estados de Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima teve, nesse período, a o maior aumento de desvios de armas de fogo do país, 1.675%.
Essa informação não surpreende e é compatível com os dados de apreensões de armas de fogo dos últimos anos, conforme vem sendo monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Evidentemente, não é correto interpretar, sem maiores explicações, o número crescente de apreensões de armas de fogo como um aumento do número de armas ilegais circulando nas ruas. Em tese, seria o contrário: quanto mais armas a polícia apreende, menos armas estão nas ruas.
Por outro lado, a oferta de armas de fogo no mercado interno aumentou, em vez de diminuir. E em vários estados o crime vem aumentando, consistentemente, nos últimos 4 ou 5 anos. Logo, faz sentido associar o aumento de apreensões ao aumento da criminalidade. Os números da violência em estados como Rondônia e Acre corroboram essa tese.
Rondônia é o líder nacional em apreensão de armas de fogo em 2022
A análise das apreensões de armas de fogo, conforme apontado pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, permite traçar uma série histórica que pode ajudar a entender o cenário dos desvios de armas de CACs apontados pelos estudos recentes.
No geral, os números de apreensões demonstram que as armas de fogo no Brasil vão parar nas mãos de criminosos com muita facilidade.
Em dados proporcionais à população, em 2022, Rondônia foi o líder nacional em apreensão de armas de fogo, com taxa de 120,24 armas apreendidas por 100 mil habitantes. Espírito Santo e Rio Grande do Sul ficaram em 2º e 3º lugares.
Mesmo quando se trata de números absolutos, Rondônia, apesar de ter menos de 1 milhão e 600 mil habitantes, é destaque regional. As polícias apreenderam, em 2022, 1.901 armas de fogo, contra 1.627 no Amazonas – que é um estado muito maior do que Rondônia, em população e território.
Apreensões são coerentes com desvios de armas de CACs
Quando analisamos as taxas de apreensões em uma série histórica de 5 anos (2018-2022), Rondônia coloca a Amazônia no topo da liderança do aumento de armas ilegais no ranking nacional – atrás apenas de Minas Gerais.
Com taxa média de 105,14 armas de fogo apreendidas por 100 mil habitantes, em média, entre 2018 e 2022, Rondônia ocupa uma posição de destaque negativo diante de seus vizinhos amazônicos.
Nesse ranking, os outros estados da Amazônia Ocidental – Acre, Roraima e Amazonas – ocupam apenas a 13ª, 18ª e 21ª posição. Esses estados compõem a 12ª Região Militar, apontada no estudo do Instituto Sou da Paz como aquela com o maior crescimento de desvios de armas de CACs no país.
É muito provável, portanto, que Rondônia esteja fazendo a média dos desvios de armas de CACs subirem em toda a região.
Na série histórica analisada aqui o número total de armas de fogo apreendidas em Rondônia (9.152) chega a ser maior do que em Alagoas (8.495) ou Mato Grosso do Sul (4.049).
Entre 2018 e 2022 foram apreendidas em todo o país 557.343 armas de fogo. O estado com o maior número total de armas apreendidas é Minas Gerais, com mais de 114.000 registros.
O ano com o maior número de apreensões em Rondônia foi 2019, com 2.027 armas registradas pelas polícias. Entre 2021 e 2022, as apreensões aumentaram 4% no estado, na contramão da tendência de queda registrada em todo o país (-1%).
O destaque no Acre fica por conta do aumento percentual entre 2021 e 2022, 63%, o maior do Brasil, indicando a necessidade de um alerta para o aumento da violência nas ruas. Em queda desde 2017, a taxa de homicídios2 no Acre voltou a crescer em 2022, chegando a 28,60 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes.
Mais armas, mais crimes
A concepção por trás da recente política de liberação de armas de fogo no Brasil é a ideia de que possuir e portar armas de fogo pode proteger os cidadãos contra a violência.
Em contraste com essa visão, especialistas insistem, há bastante tempo, a ideia de que a liberação de armas pode reduzir o crime.
Os estudos científicos continuam apontando uma correlação causal entre aumento de armas em circulação e aumento de crimes. Revisões demonstram que a disponibilidade de armas de fogo é um fator de risco para o aumento dos homicídios – incluindo homicídio de policiais.
Armas ilegais e homicídios devem continuam crescendo na Amazônia
Na linha desse raciocínio, o aumento dos homicídios em Rondônia de 2018 a 2022 é consistente com o aumento das apreensões de armas de fogo.
Da mesma forma, entre 2021 e 2022, as apreensões de armas de fogo aumentaram 19,20% no estado. No mesmo período, os homicídios aumentaram quase 14%. Entre 2019 e 2022 os homicídios aumentaram 52% em Rondônia.
Seja como for, é preciso mais tempo para medir o tamanho real do impacto das armas desviadas de CAC’s.
Evidentemente, o aumento do impacto das armas ilegais na violência na Amazônia produz mais violência. Quanto dessa violência virá de armas de CACs ainda é uma incógnita. Por isso, é fundamental melhorar os dados sobre apreensões e a política de controle de armas legais.
Porém, com poucos policiais, infraestrutura precária e uma legislação ainda bastante permissiva, o cenário amazônico é pessimista.
(*) Rodolfo Jacarandá é professor e pesquisador em filosofia, direitos humanos, crimonologia crítica e cultura contemporânea. Divulgação científica sobre violência global, no Brasil e na Amazônia. Análises filosóficas sobre o problema do crime e da punição nas sociedades contemporâneas.