A desamazonização da Amazônia: conflitos agrários, violência e agrobandidagem

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Francisco Costa
27 junho 2022
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Desmatamento na Amazônia (Imagem de Araquém Alcântara)

Ricardo Gilson da Costa Silva1

Introdução

A Amazônia brasileira, nas últimas décadas, obteve destaques nas mídias nacional e internacional, em decorrência dos graves processos de destruição ambiental e territorial que atingem os povos indígenas, comunidades tradicionais e o campesinato regional. Essas ações agressivas, estimuladas e orientadas pelo governo federal e setores do capital neoextrativista, revelam a dimensão política e a escala de ação dos grupos econômicos interessados na pilhagem da natureza e, sobretudo, na fragilidade dos territórios protegidos2, o que eleva a situação como uma questão amazônica na escala nacional.

Esse quadro tem se tornado mais grave com o golpimpeachment contra a presidenta Dilma, quando iniciou uma forte inflexão do Estado brasileiro em termos de políticas ambientais/territoriais, que praticamente abandonou a política de gestão sustentável, proteção dos ecossistemas e direitos territoriais. Sob muitos aspectos, a partir do golpimpeachment, encaminhou-se um amplo retrocesso social contra o povo brasileiro, sobretudo os pobres, os assalariados, os aposentados e as populações rurais que vivem em comunidades, cujos direitos e acesso básico ao Estado foram bloqueados com políticas neoliberais. O governo federal impôs uma agenda desestruturadora de direitos sociais, econômicos e territoriais, especialmente para o campo brasileiro, que abriga uma diversidade de territórios tradicionais.

Nesse contexto, as chamadas forças do agronegócio, assumindo a liderança dos grupos das economias neoextrativas, estabeleceram uma agenda territorial de apropriação em larga escala das terras públicas, de desterritorialização dos povos amazônicos, fragilidades dos órgãos públicos de gestão territorial e de disputa política na sociedade com a defesa incondicional do modelo de territorialização do agronegócio.

No Congresso Nacional, a bancada ruralista, braço político do agronegócio, vem atuando intensamente para que os pacotes de leis, tanto no governo Temer e, atualmente, no governo Bolsonaro, pudessem ser implementados, cujos impactos, particularmente na escala regional, têm como objetivo atingir os territórios dos povos amazônicos (território tradicionais) e do campesinato (pequenos proprietários, assentados e posseiros), com vistas a ampliar a concentração de terras e a expansão/invasão das Áreas Protegidas (Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas).

O movimento do capital na região, materializado nas economias extrativas do agronegócio, mineração, garimpagem, exploração madeireira, energia, mercado de terras e grilagem, agem para impor a lógica territorial do extrativismo global, que se desdobra nos processos de desterritorialização e privatização das terras e da natureza. A esse conjunto de expropriações Marx3 havia delineado como acumulação primitiva, no qual a violência, em suas diversas formas, torna-se o instrumento comum de expropriações camponesas, capturando a terra e natureza para o circuito mercantil.

Na região Amazônica, a multidimensionalidade e as escalas dos conflitos agrários e territoriais, anualmente apresentadas nos cadernos de Conflitos no Campo Brasil da CPT, sugerem que esse processo produz um perigoso caminho, que podemos indicar como a desamazonização da Amazônia. De modo geral, o deslocamento dos conflitos agrários, em suas diversas formas, confirma as teses de que o capitalismo não se expande sem lançar mão da violência, como modus operandi a sua saga, de tudo transformar em acumulação de capital.

Em específico, a terra e a natureza são objetos de apropriação econômica e de dominação social, desde a década de 1960, quando a política de integração nacional, assentada em grandes projetos de infraestrutura econômica, agropecuária, colonização e migração, modificou a região em suas relações internas e externas. Em outras palavras, uma região em que a natureza e o ser humano convivem em territórios tradicionais, que estavam relativamente protegidos e, de certa forma, distantes dos macros eixos econômicos estruturadores, contemporaneamente, em todas as sub-regiões amazônicas, o processo de expropriação e desterritorialização está direta e indiretamente situado, localizado, mesmo nas áreas isoladas e de difíceis acessos.

Os cadernos “Conflitos no Campo Brasil” já indicara essa tendência de agravamentos dos conflitos agrários na Amazônia. A análise que propomos nesse texto, com base nos dados de 2021, referente à categoria conflito por terra na Amazônia, fundamenta-se no processo de que os conflitos indicam a lógica da desamazonização da Amazônia, que atribuímos como projeto político-territorial dos grupos econômicos articulados nas economias extrativas, que tem nos agronegócios suas referências políticas. Desse modo, as disputas por terras e territórios é uma disputa social, no campo e na cidade, que tendem a desestruturar os elementos formadores da particularidade regional.

Modernização econômica e desamazonização da Amazônia

A chamada modernização da Amazônia, iniciada na década de 1960, sob a ditadura militar, fundamentou-se na ação do Estado brasileiro em transformar a região com políticas de reordenamentos espaciais, que produziu modificações substanciais no conjunto social e em sua configuração territorial. Houve uma reorientação da Amazônia para incorporar-se à nova socialidade do capital extrativo, processo que mantém a natureza/meio ambiente, os povos amazônicos e seus territórios tradicionais, assim como, as populações que vivem nas precárias áreas urbanas e rurais como vítimas.

A essência central desses reordenamentos, assentados em grandes plataformas extrativas, foi destravar certo isolamento geoeconômico, de modo a produzir conexões mercantis para que o país pudesse participar da economia internacional com a exploração intensiva de recursos naturais, abrindo caminho à fronteira agrícola e, posteriormente, ao processo de commoditização da Amazônia, como atualmente se constata. Em termos de divisão territorial do trabalho, restou à Amazônia a função de fronteia agrícola, provedora de economias primárias, com a mercantilização da natureza, articulada à urbanização, colonização e expansão rodoviária.

Esses reordenamentos espaciais traduziram-se na abertura dos estoques da natureza e de terras públicas ao circuito econômico, nos grandes projetos de infraestrutura, migração e colonização, crescimento populacional, expansão da rede urbana e urbanização, constituindo, assim, o quadro geral de variações estruturais que, em grande parte, ainda delineiam as principais mudanças em sua geografia regional.

Alguns dados permitem-nos compreender a escala da modernização e de expansão da fronteira. No transcurso de cinco décadas (1970-2020), as métricas da relação sociedade e espaço foram consideravelmente remodeladas, evidenciando a intensidade dessas mudanças, tanto no campo, quanto na cidade. A população da Amazônia Legal4 multiplicou por quatro vezes (de 6.931.759 para 29.627.458 habitantes5), somado ao quantitativo de municípios que passou de 323 para 760 unidades territoriais, atingindo 72% de urbanização (dados de 2010)6. Deve-se ressaltar que os estados do Pará, Tocantins, Mato Grosso e Rondônia representam 62% dos municípios da Amazônia Legal, cuja expansão da rede urbana também decorreu dos projetos de colonização agrícola e frentes pioneiras que rasgaram a floresta com eixos rodoviários, como é a situação da Amazônia Meridional (Rondônia e Mato Grosso).

Neste caso, tanto a urbanização quanto a migração/colonização (1970/1990) são processos importantes à compreensão de parte da sociedade que se constituiu na região, e que encaminha afastamentos e estranhamentos para com os elementos formadores da particularidade/singularidade amazônica. A urbanização foi uma das características da fronteira agrícola, pois serviu como espaço de conversão da sociedade à lógica da expansão capitalista (como bacia de mão de obra aos grandes projetos, por exemplo), uma vez que a distribuição de terras não atenderia a demanda migrante, configurando as cidades como nexo central da articulação regional, como “sala de espera” aos assentamentos rurais ou aos projetos de infraestruturas regionais. Muitas cidades nasceram desses “postos de espera”, sobretudo se considerarmos a diversidade produtiva – campo e cidade – que impulsionou a urbanização, o comércio regional e a condição amazônica como fronteira urbana7

Por sua vez, a migração se constituiu num processo grandioso, com efeitos nas configurações territoriais dos Estados e dos, então, Territórios Federais. Nessas décadas, as taxas de crescimento populacional foram muito superiores à média nacional8, somando ao intenso fluxo migratório – seja em função dos grandes projetos minerários, hidrelétricos e polos agropecuários, ou dos projetos de colonização agrícola (pública e privada).

Com o fluxo migratório, em sua maior parte originado das regiões Sul e Sudeste, cuja área de ação ocorreu, principalmente, nos estados de Rondônia (colonização pública), Mato Grosso (colonização privada), no sudeste do Pará (expansão agropecuária e mineração) e no Tocantins (expansão agropecuária), foi se constituindo uma sociedade regional distante e estranha aos referenciais socioculturais amazônicos. Os migrantes oriundos do Centro-Sul do Brasil, com apoio estatal, vão reconfigurar a região a partir da formação de cidades e desenvolvimento agropecuário, assentado na ideologia do pioneiro.

Assim, ousamos fazer uma analogia à teoria de Darcy Ribeiro9, referente às tipologias das formações socioculturais, na qual, uma das classificações são as sociedades transplantadas. Se compararmos os dados demográficos, rede urbana e economia regional, no âmbito de expansão da fronteira amazônica, perceberemos que as sociedades transplantadas – migrantes do centro-sul – foram “assentadas” nos estados que formam a grande área do Arco do Desmatamento (RO, MT, TO e PA). O que qualifica esse processo sociocultural – como sociedades transplantadas – é a formação de uma sociedade migrante que não tem como valor referencial, e não parece ter ainda, a estética amazônica (natureza, rios e florestas, povos originários e comunidades tradicionais) como referência simbólica e valorização cultural. Resulta em uma sociedade na Amazônia que não se sente amazônida, uma sociedade constituída na expansão de fronteira, cujos meios de produção e trabalho decorrem da transformação da natureza em espaço da agropecuária, ou seja, de sua destituição estética e simbólica. Daí os estranhamentos políticos e culturais contra as singularidades amazônicas, expressas nas populações caboclas, povos originários e comunidades tradicionais e nos territórios protegidos (Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas).

No espaço rural, ressalta-se a expansão das commodities em toda a região. A diversidade produtiva extraída da floresta, como mercadoria do extrativismo comunitário e da agricultura familiar é importante na economia regional (açaí, castanha, banana, mandioca, dentre outros). Contudo, verifica-se cada vez mais a assunção da economia neoextrativa (pecuária, soja, madeira), que invade todos os estados amazônicos. Assim, conforme dados de 2019, enquanto a área plantada das lavouras permanentes somou 7.493,51km2, as lavouras temporárias (dentre as principais, soja, milho, cana e algodão) atingiram 216.853,70km2, superior em 29 vezes. Nesse período, a estrutura fundiária cresceu consideravelmente, alcançando 856.852 estabelecimentos agropecuários em 2017. Em termos econômicos (contribuição ao PIB), em 2002, a região amazônica já respondia por 14,8% da agropecuária nacional, chegando a 21% em 2016. Ressalta-se que em 2021, todos os estados da Amazônia apresentaram alguma commodity como principal produto de exportação: a soja representou Rondônia, Mato Groso, Tocantins e Maranhão; produtos e preparações alimentícias foi o Amazonas; o Pará, com minério de ferro e seus concentrados; Roraima, com embutidos de carnes; o ouro representou o Amapá; e o Acre ficou com castanhas e cocos10.

Embora não seja algo específico da região, uma vez que nos demais estados brasileiros os produtos primários também foram o carro chefe na exportação, a situação na Amazônia é mais grave em função da quantidade de terras e recursos naturais “disponíveis” à expansão neoextrativista11. A expressividade desses números também se traduz na relação/organização política dos grupos regionais que se orientam pela defesa quase messiânica do agronegócio como único caminho socioeconômico da Amazônia, o que torna mais complexa e conflituosa a questão ambiental e territorial na região.

Na questão ambiental, certamente o desmatamento é a variável que mais expressa a espacialidade dos impactos ambientais na região, tornando-se um problema central para qualquer política pública territorial. Em 1990, com duas décadas de expansão da fronteira agrícola, a taxa de desmatamento total atingiu 10%, ampliando para 14% em 2000, e alcançando 20% em 2020. A questão que se deve analisar, a partir dessas métricas, é que posterior a 1990, quando a fronteira agrícola e a migração já haviam perdido força – o desmatamento dobrou na Amazônia, mesmo com efetivas políticas de proteção ambiental e ordenamento territorial, a exemplo dos Zoneamentos Sócioeconômicos Ecológicos, Áreas Protegidas e agências de fiscalização ambiental (nas esferas estadual e federal).

Nos últimos anos, as frentes de desmatamento se direcionam para as Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas, ignorando o ordenamento jurídico e as instituições públicas de gestão territorial. O capital (agronegócios, madeireiras, hidrelétricas, mineração, garimpos, indústria da grilagem) resolveu agir contra a política ambiental e os territórios tradicionais, no sentido de reduzir toda e qualquer forma legal e territorial que não atenda o imperativo da acumulação. Com a tendência de reprimarização da economia brasileira, os ataques aos estoques de recursos naturais (terra, água, floresta e subsolo) renovam o sentido de fronteira agrícola na região12, para a desgraça dos povos amazônicos. As forças políticas do capital extrativo reorganizam-se para desestruturar, nos planos institucional, jurídico e social, a política ambiental e os direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, ou seja, atacar os territórios que não vivem a racionalidade do capital, porque são espaços não capitalistas, territórios que produzem ontologias comunitárias com respeito e indissociabilidade da natureza.

Trata-se de ações políticas dos grupos econômicos, agregados à concepção territorial do agronegócio, e dos demais setores das economias extrativas, que atuam em diferentes escalas: no plano institucional/governamental, buscam fragilizar os órgãos públicos de gestão e fiscalização ambiental (federal e estadual); no plano político/institucional, agem principalmente no Congresso Nacional para alterar o ordenamento jurídico das leis ambientais, territoriais e de direitos humanos; na arena social, atuam na defesa política do agronegócio como “motor” do desenvolvimento econômico; nos ataques diretos, desenvolve a agrobandidagem como estratégia expressa na violência contra lideranças e ativistas dos movimentos sociais, no crime ambiental e nas práticas invasoras de Áreas Protegidas, financiando o roubo de madeira, garimpos, grilagem e expulsão/ameaças aos sujeitos que vivem no território. A agrobandidadem é a face agressora e violenta do “moderno” agronegócio brasileiro.

Nesse sentido, a desamazonização da Amazônia manifesta-se na profusão de dinâmicas territoriais que encaminham a desagregação dos elementos instituidores da particularidade regional amazônica na formação socioespacial brasileira, isto é, destaca-se que a indissociabilidade do grupo humano, natureza, trabalho e cultura, historicamente, se realiza na comunhão desses elementos formadores da distinção amazônica no conjunto da nação. Portanto, as características comuns da formação social amazônica (natureza, rios, trabalho, cultura e comunidades/populações), cada vez mais aparecem como estranhamentos e obstáculos à lógica que se pretende hegemônica na região, assumida na bandeira do agronegócio e das economias extrativas. Verifica-se a aglutinação de grupos econômicos/políticos em todos os estados da Amazônia Legal que encaminham uma coalização regional em termos político-econômicos com vista à desterritorialização dos povos originários e comunidades tradicionais.

Panorama dos conflitos por terra na Amazônia

A categoria conflitos por terra utilizada pela CPT, designa as “ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso aos recursos naturais”13, envolvendo os povos indígenas, comunidades tradicionais, posseiros, pequenos produtores rurais e movimentos sociais que atuam no campo. Abrange o universo social que vive no mundo agrário, sob diversas formas de trabalho coletivo, ou seja, são espaços das coletividades humanas, verdadeiros territórios da vida e da natureza, que vêm sofrendo ataques sistemáticos, tanto dos grupos ligados ao capital extrativo, quanto do Estado. Atualmente, as fragilidades desses territórios é parte da agenda política dos agronegócios, que buscam impor sua visão territorial na Amazônia, com violência e propaganda.

Na escala nacional, os conflitos por terra na Amazônia assumem proporções alarmantes, o que evidencia a fragilidade da condição humana sofrida pelos sujeitos sociais que lutam pela permanência em suas terras de trabalho, espaço de reprodução social. Em 2021, a Amazônia registrou 53% dos conflitos por terra no Brasil e 62% do número de famílias envolvidas. Quando se observa o quantitativo das áreas em disputas, a escala dos conflitos mostra toda a razão das disputas por terras e territórios na região. Acompanhando os dados da CPT, 97% das áreas de conflitos localizam-se na Amazônia, com um total de 68.881.076 de hectares. A maior parte dessas áreas é de territórios indígenas e de seringueiros/extrativistas, ou seja, territórios protegidos na forma da lei. Trata-se da ampliação dos níveis de expropriações que atua tanto nos conflitos por terras do campesinato, quanto em terras que formam os territórios protegidos. Evidencia-se na agrobandidagem o roubo/pilhagem da terra pública assegurada, sobretudo, nas Áreas Protegidas (Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas)14.

A agrobandidagem, como processo de expropriações direta e indireta, tem na violência e no crime programado (há planejamento e dolo)15 sua principal estratégia para converter áreas camponesas, dos povos indígenas e das demais comunidade tradicionais em espaço do capital extrativo. Assim, o detalhamento dos conflitos por terra, a partir das 21 tipologias de conflitos registrados pela CPT, indica a intensidade e a natureza assustadora que o processo revela. Destacando somente algumas tipologias, na Amazônia ocorreram 65% das ameaças de expulsão, 67% das contaminações por agrotóxico, 79% dos desmatamentos ilegais, 87% das expulsões, 81% das grilagens, 82% das invasões, 70% das pistolagens, 75% das omissões/conivências do Estado e 72% das violações nas condições de existência.

Os conflitos por terra na Amazônia também evidenciam a intensidade das violações às condições humanas, ao direito de existir e viver na terra (nas diversas formas da pequena propriedade) e nos territórios tradicionais (povos indígenas e comunidades tradicionais). Há todo um processo teleológico, sistematicamente pensado, para impor às comunidades rurais novos cercamentos e apropriações dos territórios não capitalistas, um projeto do Estado e do capital extrativo que busca ampliar a concentração fundiária, um verdadeiro revigoramento da fronteira extrativa, uma fronteira sem gente, uma fronteira da desterritorialização.

Na escala intrarregional, quando observamos os dados no âmbito dos estados da Amazônia Legal, o capital extrativo16 foi responsável por 75% dos conflitos por terra, e as instituições estatais por 18%. Na distribuição, a posição dos principais causadores acompanha a seguinte ordem: fazendeiros (27%), grileiros (14%), empresários nacional e internacional (14%), madeireiros (12%) e o governo federal (11%). Quanto aos grupos sociais, vítimas das ações causadoras de conflitos, são os povos indígenas (30%) que sofrem quantidades maiores de agressões, seguidos dos posseiros (22%), quilombolas (13%) e sem-terras (13%).

Se agregarmos os grupos que vivem em Áreas Protegidas (indígenas, quilombolas, seringueiros e extrativistas) e que fazem uso coletivo da terra (ribeirinho, pescador e castanheiro), eles sofreram com 55% dos conflitos por terra. A maioria vive em territórios protegidos, regulamentados em lei e reconhecidos pelo o Estado brasileiro.

Trata-se de invasões sistemáticas para desestruturação dos territórios tradicionais. Nesses territórios, que tanto servem à reprodução do grupo social quanto à proteção da natureza, estão localizados os principais recursos naturais de interesse do capital extrativo, sobretudo da mineração e garimpagem17. O argumento central do capital extrativo, muito esboçado no atual governo e na bancada ruralista, é que o Brasil tem muitas Áreas Protegidas, portanto, caberia uma redução gradual destas unidades territoriais para potencializar o crescimento e a expansão dos agronegócios. Trata-se de um discurso político que ganha capilaridade social no Brasil, sobretudo nas regiões de expansão de fronteiras (Amazônia e Matopiba), de que é necessário reduzir tais áreas para estimular o crescimento econômico, principalmente com a argumentação pseudo-humanitária de produção de alimentos.

O grupo da propriedade familiar registrou 44% das agressões sofridas, as quais foram agregadas nas seguintes tipologias: posseiro (22%), sem-terra (13%), assentado (8%) e pequeno proprietário (1%). São famílias que vivem da terra de trabalho, que produzem e comercializam seus produtos nos municípios, contribuindo, assim, com a economia local. A situação fundiária, com a suposta “fragilidade jurídica” das posses familiares, enseja mais concentração de terras para os causadores dos conflitos por terra (fazendeiros, grileiros, empresários e madeireiros).

No primeiro caso, na situação das coletividades nos territórios protegidos, o capital extrativo, por meio dos grupos político-empresariais e instituições de pesquisa, advoga a tese de que há exageros na criação de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas no Brasil. As narrativas mais explícitas da bancada ruralista defendem a revisão/reavaliação total dessas áreas, enquanto outros estudos acadêmicos favoráveis a essa tese, ainda que de modo dissimulado, argumentam que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente e que, portanto, caberia uma redução de Áreas Protegidas para potencializar a produção agropecuária.

Quanto ao grupo das pequenas propriedades familiares em situação de conflitos agrários, tornou-se comum a máxima na bancada ruralista, e nos argumentos dos governos estadual e federal, de que os conflitos agrários poderiam ser resolvidos com a regularização fundiária. Em outras palavras, a ausência da regularização causa a suposta “insegurança jurídica” no campo, uma vez que “não se sabe quem realmente é o proprietário da terra”.

Assim, se o território é protegido na forma da lei, de modo a ser juridicamente perfeito, critica-se a lei e os “exageros” da proteção ambiental e dos territórios tradicionais. Se as propriedades familiares são posses, portanto, não tituladas, cria-se um campo de “dúvida jurídica” para o capital extrativo acelerar as expropriações. Em ambas as ocorrências, a agrobandidagem representa a prática política e criminosa dos grupos econômicos que se identificam com o moderno agronegócio. Assim, na Amazônia, em termos de representação social desses grupos econômicos para com a natureza, territórios protegidos e propriedades familiares, principalmente se forem ligadas aos movimentos sociais, a violência é caminho prático e político de impor a lógica territorial do agronegócio.

Conclusão

Podemos periodizar as recentes ocupações/invasões da/na Amazônia em dois momentos, dado a diferenciação e sentidos do que ficou conhecido na literatura acadêmica de modernização e fronteira amazônica.

Neste caso, há uma diferenciação do processo inicial de expansão da fronteira na região. Nas décadas de 1970 a 1990, os conflitos envolviam, sobretudo, posseiros, fazendeiros e grileiros, centrados no fato das precárias regularizações fundiárias e extensas áreas devolutas, onde o Estado não sabia ou não tinha controle das ocupações agropecuárias. As populações indígenas e as comunidades tradicionais, os posseiros migrantes foram as principais vítimas desse processo, somadas ao crescente desmatamento.

Contudo, ao menos duas questões são importantes ressaltar. A modernização/expansão da fronteira estimulou a migração e instituiu a colonização agrícola, que atendeu milhares de famílias camponesas, na época denominadas de colonas. Isso ocorreu, principalmente, no sudeste do Pará e na rodovia Transamazônica, nos estados de Rondônia e Mato Grosso. Portanto, com todas as críticas que já fizeram ao processo, foi uma fronteira em que os migrantes, ainda que de forma precária e como muita violência, tiveram acesso à terra. A expansão das propriedades da agricultura familiar camponesa é também resultado desse processo. A outra questão inerente à expansão da fronteira é que ela se realizou no período em que o Estado (União, Estados e Territórios Federais) tinha pouco conhecimento científico referente à Amazônia e, muito menos, planos de ordenamentos territoriais. Constituía-se em espaço territorial sem a gestão estatal direta, ou seja, havia imensas áreas chamadas de terras devolutas, onde, efetivamente, pouco se sabia onde terminava um e iniciava outro território. O governo tratou de assegurar o controle de imensas áreas para os chamados grandes projetos, mas não teve a prioridade de ordenar as demais áreas nos estados.

Atualmente, há um processo inverso com a expansão/invasão do agronegócio na Amazônia. Desde a década de 1990, o Estado ampliou os instrumentos de gestão ambiental e instituiu inúmeros territórios protegidos. De certa forma, com a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro reconheceu direitos sociais e territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem em territórios coletivos, não mediados pela propriedade privada e socialidade do capital. São três décadas de lutas, resistências e sofrimentos para garantir direitos básicos.

A contradição nesse período é que, ao tempo que o governo instituía os territórios protegidos, estimulava o crescimento do agronegócio na Amazônia, que só funciona com concentração de terras e logística, dois marcos qualificam a situação: em 1997 inaugurava-se a Hidrovia do Madeira, com portos da Amaggi e Cargill na cidade de Porto Velho (RO). Em 2003 a Cargill iniciou suas operações portuárias em Santarém (PA). Esses portos, ligados às rodovias serviram como eixo de expansão do agronegócio, cujos impactos diretos foram os aumentos do desmatamento, a abertura de novas frentes de expansão e uma coalização da elite regional em favor desse modelo de desenvolvimento econômico.

O agronegócio conseguiu o que a mineração e a pecuária não tiveram capacidade de fazer: dar unidade política a uma forma de economia extrativa que ataca os elementos simbólicos e portadores da particularidade amazônica. Por isso, nosso entendimento é que, para além de um sistema tecnológico produtivo no campo, os agronegócios instituem uma relação política desestruturadora dos direitos sociais e territoriais dos povos amazônicos, de não reconhecimento dos direitos desses povos a viverem livres, em espaços não mediados pela lógica do capital. Portanto, buscam a desagregação de comunidades e de territórios, seja pela agrobandidagem, seja pela propaganda, seja nas áreas institucionais. Um verdadeiro processo de desamazonização da Amazônia. Toda luta dos povos indígenas, das comunidades tradicionais e do campesinato é uma resistência política e ontológica, uma resistência ao globalitarismo e totalitarismo18, da globalização perversa que busca submeter o ser humano ao um dado físico e quantitativo no processo histórico.

_________________________________________________________________________

1 Professor da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia – GTGA/UNIR: www.gtga.unir.br

2 Entende-se por Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Terras Quilombolas.

3 MARX, K. A chamada acumulação primitiva. In: O Capital: para a crítica da economia política. Livro I, volume II, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 833-885.

4 Amazônia Legal é uma região de planejamento, instituída na Lei Nº 5.173, de 27 de outubro de 1966, com o objetivo de orientar e promover o desenvolvimento econômico e social da região. Abrange os estados da Região Norte, Mato Grosso e parte do estado do Maranhão.

5 Dados estimados pelo IBGE, referentes ao ano de 2020.

6 IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

7 BECKER, B. K. Amazônia: Geopolítica na Virada do III Milênio. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006.

8 DE OLIVEIRA, A. S.; GARCIA, R. A.; COSTA, A. CARACTERIZAÇÃO DA DINÂMICA DEMOGRÁFICA DA AMAZÔNIA LEGAL E PROJEÇÃO POPULACIONAL MUNICIPAL. Cadernos do Leste[S. l.], v. 11, n. 11, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/caderleste/article/view/13065. Acesso em: 3 mar. 2022.

9 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: Etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

10 https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/01/07/commodities-ja-dominam-exportacoes-ate-em-sp.ghtml

11 COSTA SILVA, R. G; LIMA, L. A. P; CONCEIÇÃO, F. S. (orgs). Amazônia: dinâmicas agrárias e territoriais contemporâneas. Editora Pedro & João, São Carlos, 2018. Link: https://gtga.unir.br/pagina/exibir/9501

12COSTA SILVA, R. G; SILVA, V. V; MELLO-THÉRY, N. A; LIMA, L. A.P. New frontier of expansion and protected areas in the state of Amazonas. Mercator, Fortaleza, v.20, e20025, p. 1-13, 2021. Link: http://www.mercator.ufc.br/mercator/article/view/e20025

13 CPT. Conflitos no Campo – Brasil 2021.Goiânia: CPT Nacional, 2021. p. 13.

14 COSTA SILVA, R. G. Da apropriação da terra ao domínio do território: as estratégias do agronegócio na Amazônia brasileira. In: Amazônia: dinâmicas agrárias e territoriais contemporâneas. 1ed.São Carlos: Pedro & João Editores, 2018, v. 1, p. 25-48.

15 Cito o “Dia do Fogo”, ocorrido nos dias 10 e 11 de agosto de 2019, que evidencia a ação planejada de fazendeiros do estado do Pará, que coordenadamente atearam fogo na Amazônia em apoio à política ambiental do governo federal. Neste mês de agosto, a Amazônia foi incendiada pelos apoiadores do agronegócio, tratando-se em escala regional de uma manifestação política com a prática da agrobandidagem.

16Conforme as tipologias presentes na categoria conflitos por terra, identificou-se os agressores como: fazendeiro, grileiro, empresário, madeireiro, garimpeiro, empresário internacional, mineradora.

17ALMEIDA et al, A. W. B. (orgs.). Mineração e Garimpo em Terras tradicionalmente ocupadas: conflitos sociais e mobilizações étnicas. 1. Ed. Manaus: UEA Edições/ PNCSA, 2019; SILVA FILHO et al. (orgs.). Impactos Socioambientais da Mineração sobre Povos Indígenas e Comunidades Ribeirinhas na Amazônia. 1ed., Manaus: Editora UEA, 2020, v. 1.

18 SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 16 ed., Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2008.

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