Txai Suruí com a sua mãe. |
Txai sabia que, naquele cenário frio e formal de fundo azul, levava, além da companhia de seus ancestrais, a voz de muitas outras mulheres que lutam contra as mudanças climáticas. Mulheres que, como ela, já entenderam que a comunicação é o elo indispensável para que o mundo compreenda a urgência da preservação do meio ambiente.
Ativismo precoce
O nascimento não foi fácil, conta a mãe, a renomada indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo. “Fui desacreditada pelos médicos, segurei a Txai pelos nove meses, uma gravidez de risco, tomei remédios da medicina ocidental e da aldeia, mais da aldeia, para segurá-la”, conta Ivaneide. Mesmo assim, ela lembra que manteve a rotina de ir para a floresta lutar pelo território dos povos originários do estado de Rondônia. “Foi a primeira filha em meio a muita luta; mesmo com perigo de perder eu ia tirar invasor. Dentro da barriga, a Txai já ia para o meio do mato. Ela nasceu para lutar, para ser guerreira.”“No meu povo é assim”, diz Txai. “Quando a criança nasce, você observa, e uma tia por parte de pai dá o nome. Dependendo, pode ser o pajé ou o avô. O meu nome significa mulher inteligente.” E assim foi selado seu destino, não só pela nomenclatura, mas também pelo seu pai, Almir Suruí, ativista indígena reconhecido internacionalmente, que um dia, quando ela tinha entre cinco e seis anos, a colocou em cima de um tronco durante um ritual e declarou: “Esta menina vai ser uma grande líder”.
Esse destino, Txai aceita e cumpre, com a força do clã do vento forte, o clã de sua família dentro da etnia paiter suruí. Uma força que, provavelmente, une os três mundos onde ela cresceu. “Eu falo que são três mundos, porque as pessoas têm a tendência de achar que são dois, pois consideram que os povos indígenas são um só, mas temos saberes e espiritualidades diversas”, explica Txai. “Eu cresci na minha aldeia, Lapetanha, onde vive meu povo paiter, na terra Uru-Eu, que é onde vive o povo jupau, suruí e uru-wau-wau. E aqui na cidade também. Me lembro de estar sempre nesses três lugares.”
Escola de brancos
Quando começou a frequentar a escola em Porto Velho, Txai compreendeu pela primeira vez que algo nela a fazia diferente dos colegas. “Eu lembro que um dia voltei chorando para casa porque me chamaram de índia”, diz Txai. “A gente é paiter, eu não sabia o que era esse negócio de índia, então minha mãe me explicou e eu entendi o que era o racismo.” Desde então, ela nutre ainda mais orgulho em assumir sua identidade.
Além de sofrer bullying, Txai também precisou conviver com um currículo que pouco fala sobre sua cultura, e ainda repete a história oficial de que o Brasil teria sido ‘descoberto’. “Um dia cheguei falando das girafas e dos leões, e minha mãe ficou furiosa; foi até a escola levando livros sobre a fauna e flora da Amazônia”, diz. Mesmo assim, Txai sempre tirou notas boas, que a levaram a entrar na faculdade antes mesmo de terminar o ensino médio. “Fui aprovada no Enem na Universidade Federal de Rondônia para cursar Direito. Tivemos que entrar com um mandando de segurança para que me aceitassem.”
Txai cursou o último ano do ensino médio e o primeiro de faculdade juntos, e seguiu enfrentando a rotina do preconceito. “Falavam que eu tinha entrado por cota, uma grande mentira. Mas eu continuava sendo a única indígena na sala. Também fui a primeira indígena a assumir o Diretório Central dos Estudantes da faculdade”, conta Txai. “Como sempre fui questionadora, abri a porta para debates sobre temas indígenas e dei continuidade às atividades sobre os LGBTQI+, movimento negro e feminista.”
A intensa agenda na luta pelos povos originários obrigou Txai a trancar a faculdade – mais um lugar a ser decolonizado. “Precisamos levar uma perspectiva indígena para esses locais”, diz. “O Direito é muito centrado na propriedade privada, e a gente tenta trazer outra visão, um olhar de coletividade, pois ali se olha muito pouco para a vida, e muito mais para as coisas.”
O trânsito por mundos tão diferentes é, para Txai, algo muito natural. Poliglota desde muito jovem, ela flui entre as aldeias e a urbanidade. Além do tupi mondé, língua dos paiter suruí, Txai fala português e inglês – algo que fez toda diferença quando foi discursar na abertura da COP26 a convite das Nações Unidas. O breve momento teve uma repercussão muito maior do que ela imaginava. “O meu telefone não para desde então, são muitos convites e muitos pedidos de entrevista, eu não consigo nem responder.”
Além dos convites, a agenda inclui a coordenação da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, uma organização da sociedade civil criada pela mãe de Txai que desenvolve diversas atividades de estudos e pesquisas, diagnósticos e planos de gestão e fortalecimento em terras indígenas, vigilância e fiscalização. Ela também é conselheira do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, da World Wildlife Fund (WWF) e do Pacto Global da ONU, além de voluntária da ONG Engajamundo.
Ameaças redobradas
A exposição mundial também reforçou a rotina de ameaças que sua família sofre há gerações. A luta contra invasores de terras indígenas levada pelos pais de Txai – Almir e Inaveide – já obrigou a família a viver sob escolta da Força de Segurança Nacional. Hoje em dia, tudo que fazem é monitorado 24 horas. “É claro que temos medo, mas não fazer nada é pior”, diz Txai.
“Já entraram aqui em casa e colocaram arma na cabeça da minha irmã. Logo após o discurso na COP, fomos perseguidos por um carro quando voltávamos do supermercado. Sofremos ameaças o tempo todo.” Além de seus pais, ela faz questão de citar também referências de outros líderes, que, como ela, sofrem ameaças por conta da mesma luta: Juma Xipaia, cacica do Médio Xingu e criadora do Instituto Juma, Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Associação dos Povos Indígenas e o cacique Raoni.
Para Txai, a resposta a essa violência contra sua família e os povos indígenas é o diálogo, com resistência, paciência e amor. “Olha o que está acontecendo com os yanomamis: são crianças e mulheres estupradas e as pessoas não se comovem?”, diz ela.
“Então perdemos o nosso amor. A nossa empatia é mais do que esquerda e direita, é uma questão de humanidade, a gente precisa falar mais de amor. Amor, ainda que seja uma palavra imaterial, uma coisa que a gente não toca, assim como o vento forte, que a gente não vê, está aqui. A gente precisa falar de amor para transformar o mundo.”
Protagonismo feminino pela Amazônia
Para destacar o protagonismo das mulheres na luta contras as mudanças climáticas, a National Geographic escolheu três personagens cujos currículos deixam claro essa relevância. Txai Suruí é a primeira líder mulher indígena de seu povo já reconhecida internacionalmente. Amanda Costa – das entrevistadas do quinto episódio do Nat Geo Podcast – foi capa de revista quando apareceu na lisa da Forbes #Under30, que destaca os mais brilhantes empreendedores e criadores brasileiros abaixo dos 30 anos. Paulina Chamorro – entrevistada do primeiro episódio do Nat Geo Podcast – já recebeu o Prêmio Socioambiental Chico Mendes duas vezes, a Medalha João Pedro Cardoso, condecoração do Governo do Estado de São Paulo, e o título de cidadã paulistana pela Câmara de Vereadores de São Paulo.
“Nossa luta também é por espaços de poder, espaços abertos por essas jovens. E, quando falamos em mulheres, estamos falando em metade da população mundial, é uma questão de representatividade”, diz Paulina. “Então, que a gente tenha cada vez mais espaços de mulheres incríveis, para que elas inspirem jovens e meninas que estão vindo. O protagonismo de mulheres pode transformar o mundo.”
Entretanto, mais do que prêmios e distinções, elas caminham abrindo caminhos, sejam em meio às arvores da Amazônia, ao concreto da periferia das cidades ou nas águas do oceano.
“Acho que dá tempo, ainda há esperança, é um caminho longo, árduo e difícil, e as pessoas precisam entender isso”, disse Txai Suruí. “Não é porque é difícil que a gente tem que deixar de fazer. Nunca vai ser fácil.”
(National Geographic Brasil – Gabi Di Bella)