Txai Suruí, ativista indígena do povo Paiter Suruí, foi o rosto da COP26 em Glasgow| (Lucas Landau/ISA) |
Nas histórias em quadrinhos de faroeste que chegavam em pequenos aviões à aldeia em Rondônia para onde a família de Ivaneide Bandeira Cardozo, 64 anos, tinha se mudado, quando ela era bebê, os indígenas eram retratados como vilões que acabavam sendo mortos por homens brancos. Revoltada com esse enredo recorrente, desde que começou a aprender a ler com a mãe nas extintas revistas O Cruzeiro e Manchete, ela conta que prometeu a si mesma, ainda menina, mas já com senso crítico aguçado: “Quando eu crescer, eu vou lutar contra isso”.
A promessa foi cumprida. Décadas depois, já sendo chamada de Neidinha Suruí, a ativista e indigenista que atua como coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé se tornou reconhecida pela luta em prol da natureza e dos direitos humanos na Amazônia, mesmo pagando um preço alto por isso — e sua família também.
Seu sentimento de pertencimento e seu ativismo se dividem, principalmente, entre dois territórios indígenas em Rondônia: a Terra Indígena Sete de Setembro e a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Em ambas, ela tem testemunhado cenários cada vez mais parecidos com os das histórias em quadrinhos nos quais indígenas perdiam a vida ao defenderem a natureza, a terra e a cultura dos seus povos.
A Terra Indígena Sete de Setembro, do povo Paiter Suruí, se tornou mundialmente conhecida pela liderança de seu marido, o cacique Almir Suruí, que, com uso de ferramentas de tecnologias da informação, tem buscado proteger o território, um dos mais desmatados da Amazônia. Não por acaso, esses esforços já o tornaram alvo de inúmeras ameaças de morte nos últimos anos.
Foi nessa TI que nasceram seus cinco filhos, dentre os quais Txai Suruí. A jovem ativista conquistou projeção internacional desde que discursou em 2021 na 26ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP-26), em Glasgow (Reino Unido), denunciando a violência contra os povos originários no Brasil. A partir de então, também passou a sofrer ameaças e intimidações recorrentes.
A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau é onde Neidinha viveu a infância e de onde saiu pela primeira vez aos 12 anos para estudar na capital Porto Velho, sem nunca ter perdido o contato com a aldeia e lutando contra os seus invasores até hoje. Mesmo não tendo o sangue dos povos que lá vivem (são nove), ela conta que se reconhece pela identidade indígena e pelo vínculo cultural com esse território, onde seu pai chegou para trabalhar no antigo seringal Ricardo Franco, incorporado anos depois a essa TI no processo de demarcação homologado em 1991.
Natural do interior do Ceará, seu pai foi atraído pelo recrutamento dos chamados “soldados da borracha” no Nordeste, com promessas de vida nova pela extração de látex das seringueiras da Amazônia, em uma época em que o Governo Federal criou essa e outras frentes para sua ocupação da região. Ele veio inicialmente para o Acre e lá conheceu a mãe de Neidinha. Depois que a menina nasceu, o jovem casal se mudou para Rondônia, onde fincou raízes, assimilando o modo de vida indígena de uma terra da qual a família também se sente parte.
Em busca de reconstituir a história familiar, Neidinha conta que recentemente descobriu que o seringal onde o pai trabalhou no Acre foi integrado à Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, instituída em 1990, dois anos após o assassinato do líder seringueiro. “Pretendo ir até lá para saber mais sobre essa trajetória dos meus pais”, planeja.
Filme retrata resistência indígena
Aflito com as inúmeras pressões enfrentadas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, um grupo de lideranças passou a ser treinado para reagir aos invasores com estratégias de articulação, monitoramento e proteção territorial a partir do uso de drones, câmeras e outras ferramentas de tecnologia digital.
Esforços assim têm sido possibilitados por parcerias que têm permitido também a disseminação de informações sobre as ameaças sofridas. Um desses projetos está sendo mantido pela organização ambientalista WWF-Brasil, assegurando vigilância online de áreas invadidas que dificilmente poderiam ser acessadas, com segurança, de outras formas.
Foi por essa forma de atuação em rede que surgiu uma oportunidade de mostrar para o mundo o cenário de violência enfrentado na TI pelo documentário O Território, lançado nos Estados Unidos e na Europa em agosto e, no Brasil, em 8 de setembro, depois de três anos e meio de filmagens. Essa é uma coprodução entre Brasil, Dinamarca e Estados Unidos, dirigida por Alex Pritz, com a participação de jovens lideranças indígenas como Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau que protagonizaram as cenas, filmaram ameaças e se integraram à equipe que conta com Txai Suruí assinando a produção executiva. O filme tem conquistado reconhecimentos internacionais como os Prêmios de Público e o Especial do Júri no Festival de Sundance 2022 (EUA).
Pelas limitações de circulação de pessoas no período da pandemia, os indígenas fizeram as filmagens dentro da aldeia, enquanto o restante da equipe cuidava da gravação externa do contexto das invasões de florestas da TI Uru-Eu-Wau-Wau. “Invasores pensaram que receberiam terra e não teriam punição. Pessoas pobres foram usadas pelos ricos para invadir. Diziam para eles que a Terra Indígena tinha sido reduzida”, denuncia Neidinha.
As filmagens foram atravessadas por dois impactos de grande repercussão local. Um foi a pandemia da covid-19, que atingiu diversas Terras Indígenas no Brasil e afetou de maneira dramática a família Suruí. Neidinha e o marido perderam suas mães, o que significa que os filhos perderam as duas avós em processos traumáticos de crise sanitária, além de outros parentes e amigos. Ela calcula a morte de pelo menos 50 pessoas mais próximas.
Além disso, a aldeia sofreu um forte abalo emocional diante de um crime praticado com requintes de crueldade contra o professor Ari Eu-Wau-Wau. Referência local na defesa do território, esse jovem líder indígena foi assassinado há dois anos e o clamor por justiça nesse caso ainda continua ecoando.
“A notícia nos causou um choque. Participamos da vida dele. Meus filhos cresceram com ele”, relata Neidinha, visivelmente emocionada com a lembrança. “Ele aparece no filme. Foi um crime bárbaro”, acrescenta. O ativista foi mencionado no discurso que Txai Suruí apresentou em Glasgow. Um suspeito foi preso em julho deste ano, mas seu nome e as motivações do crime não foram divulgadas, gerando manifesto de organizações indígenas.
Segundo foi informado à Mongabay pela Polícia Federal de Rondônia, o suspeito continua preso, e pelo andamento das investigações lideradas pelo delegado Jorge Florêncio de Oliveira, da Delegacia Descentralizada de Ji-Paraná, “o motivo do homicídio, possivelmente, foi que o suspeito do crime estaria incomodado com a presença de Ari na região”.
Ainda segundo o comunicado, “o corpo não demonstrava sinais de autodefesa, assim, uma das linhas investigativas apuradas pela Polícia Federal trata-se da hipótese de o autor do crime ter oferecido substância que, uma vez ingerida pela vítima, deixou Ari desacordado para então iniciar as agressões físicas que culminaram em sua morte. Posteriormente, conduziu o corpo para outro local”.
Nos esclarecimentos enviados à reportagem, foi informado também que, “embora o suspeito não tenha confessado o crime para a Polícia Federal, uma vez que exerceu seu direito de permanecer em silêncio, em outros momentos confessou a prática criminosa para outras pessoas narrando detalhes que somente foram constatados pela perícia, como, por exemplo, o local da morte não foi o mesmo que o corpo foi encontrado”. “Cabe também a informação de que o autor é acusado de outros crimes, inclusive homicídio, e tem um histórico de prática de violência”, acrescenta o comunicado.
O suspeito permanece preso e foi pedida a manutenção da prisão preventiva ao Ministério Público Federal (MPF). Embora não tenha havido manifestação sobre a solicitação, há expectativas de que o MPF acate o pedido, já que “o relatório final é bastante robusto e com provas de autoria, motivação e materialidade”, segundo informado.
Impactos psicológicos acompanham a família
Neidinha Suruí conta que vive cercada por aparatos de segurança e que se sente “prisioneira dentro da própria casa”. Cada vez que precisa sair tem que montar estratégias que provocam desgastes físicos e emocionais. “As pessoas não param para pensar nos abalos que atravessam a vida das pessoas que passam por esse tipo de pressão. Eu vivo aos sobressaltos pelas ameaças de morte”, desabafa.
Em função das ameaças sofridas pelo casal Suruí, a família viveu escoltada por militares entre 2010 e 2014. “Ficamos todos abalados, adoecidos. Não podíamos ir a um restaurante, como faz qualquer família. Todo mundo olhava para nós. Parecia que nós éramos os criminosos”, recorda. Os danos na saúde física e psicológica foram fortes o suficiente para que eles desistissem de viver sob aparato policial. “Temos proteção de grupos de apoio. Mas temos medo de receber amigos em casa”, lamenta.
Quando indagada sobre o sentimento de ser mãe de uma jovem como a ativista Txai Suruí, que desponta como promessa de desdobramentos das lutas socioambientais dos pais, Neidinha desabafa sobre a divisão de sentimentos: “Sinto orgulho por ter uma filha que está lutando pelo planeta, mas ao mesmo tempo temo pelos riscos enfrentados. Ela também tem sofrido muitos ataques racistas e ameaças de morte. Tudo isso me tira o sono”.
Motivos de orgulho também vêm à tona ao contar que recursos financeiros do filme vão custear a sede da associação comunitária da TI, onde funcionará um centro de formação em mídias digitais para que os indígenas possam fazer seus registros e ações de comunicação. Arquitetos e engenheiros estão trabalhando no projeto já aprovado pelas lideranças locais.
Sobre o futuro, ela promete seguir lutando “para mudar a forma como se trata a natureza no nosso país e pelos direitos dos que sofrem as consequências de uma sociedade que não respeita a vida”.
Trailer oficial do filme O Território: