‘Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar’: indígena morta a tiros era importante liderança espiritual

Estela Verá era importante figura para a cultura indígena Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
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FRANCISCO COSTA
20 dezembro 2022
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Rezadeira, indígena Estera Verá foi morta de maneira violenta e o crime continua sem solução

A indígena Estela Verá, de 67 anos, era uma importante rezadora Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Familiares confirmaram a morte da idosa assassinada a tiros por homens encapuzados na frente do próprio filho, na tarde de quinta-feira (15), na Aldeia Porto Lindo, localizada na cidade de Japorã (MS), a 452 km de Campo Grande. O caso, registrado como feminicídio, é investigado pela Polícia Civil. O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Mato Grosso do Sul, Matias Benno, descreve Estela Verá como “um pilar da cultura e uma índigena super importante”.

“Era uma pessoa fundamental, que tinha ampla participação na vida e na recuperação daquele território e também na manutenção dos aspectos de espiritualidade próxima.”

Além de ser influente na região, a rezadora participou de livro e filme sobre os povos originários do Brasil. “A ñandesi Estela Verá sempre foi um pilar na manutenção dos saberes Guarani e Kaiowá e lutou a vida toda pela valorização dos rezadores e rezadoras”, detalha uma publicação da página do filme “Yvy Pyte - Coração da Terra”, que teve a participação da indígena.

O coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul ressalta o impacto da perda da rezadora. “Ela era uma base firme, ou seja, junto com outros rezadores que foram falecendo era uma pessoa de inestimável valor para a comunidade, para os jovens, para a perpetuação do modo de ser da comunidade”, afirma Matias Benno.

Verá também esteve presente na edição 2011-2016 da série “Povos Indígenas no Brasil”, lançada pelo Instituto Socioambiental (ISA). A indígena conversou com a antropóloga Lauriene Seraguz e teve texto traduzido por ela em conjunto com Jacy Vera.

Leia a seguir um trecho do texto de Estela Verá:

“Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem limite. Está tudo fora do tempo.

No mundo todo está acontecendo isso, não é só no Brasil. Aqui estamos um pouco mais protegidos porque ainda temos opuraheiva. Tudo vai estar perdido. Os cantos hoje estão muito mais curtos (mbyky) do que eram antes e os seres humanos estão morrendo muito antes nos tempos de hoje. Pelo jeito vai continuar assim, por causa do canto curto, que não é mais como o antigo (longo, puku).

Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho forças para continuar a minha vida como opuraheiva.

Se hoje o mundo ainda não acabou é pela vida destes inocentes, pois, do mesmo jeito que o Kuarahy (Sol) ilumina a gente, ele pode sumir e acabar com tudo. Isso vai acontecer quando acabarem os opuraheiva. Kuarahy pode fazer uma troca e nos devolver o que fizemos contra terra, para então, renovar e começar tudo de novo. […]”

DE QUEM SÃO AS DIGITAIS DO ASSASSINATO 

O assassinato da indígena Estela Vera Guarani, de 67 anos, é um acontecimento estarrecedor. É o quinto homicídio de indígenas Kaiowá e Guarani em áreas de conflito em Mato Grosso do Sul, somente em 2022. E isso parece estar longe de acabar. Rezadora tradicional e liderança em sua aldeia, Estela foi morta a tiros no dia 15 de dezembro. Estava em casa com seu filho quando, às 15h, dois homens encapuzados e armados entraram e os atacaram. Tentaram fugir, mas Estela foi atingida pelos disparos.

No local, foram encontrados pela polícia cartuchos de arma calibre 36, de uso mais comum em espingardas de caça. Até agora, ninguém foi preso, e outros detalhes da morte permanecem inexplicados. Entidades e parlamentares do estado estão cobrando atenção ao caso. Se os detalhes do crime ainda permanecem ocultos, o contexto onde ele ocorreu é de conhecimento geral. Trata-se do problema estrutural da falta de terra.

Enquanto aguardam a demarcação de suas terras ser efetivada pelo Estado, os Guarani e Kaiowá vêm sofrendo profundamente, há décadas, todos os males que a subtração do território e da floresta poderia causar em suas vidas. Apinhados em pequenas reservas, e expostos à enorme pressão do agronegócio, os territórios indígenas padecem de uma epidemia de violência, escalando cada vez mais nas comunidades.

Durante os anos de governo Bolsonaro, a falta de terra aprofundou avassaladoramente a relação de dependência das comunidades indígenas e camponesas ao agronegócio. No Mato Grosso do Sul, os indígenas foram abandonados à fome pelo atual presidente. Centenas de famílias dependem de cesta básica para sobreviver, e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não está realizando a entrega – ou realiza de quatro em quatro meses, projetando cenas de mães e crianças desesperadas. Produtores de soja, aproveitando-se da fome, têm arrendado áreas ilegalmente dentro dos territórios Guarani e Kaiowá.

Estela era conhecida por lutar contra os arrendamentos, inclusive ao lado de outras lideranças femininas ameaçadas de morte e que já sofreram agressões, como é o caso de Kuña Kuarahy. As duas fazem parte de um corajoso movimento que se opõe aos arrendamentos no tekoha Yvy Katu, local onde Estela foi assassinada. Por resistirem ao arrendamento, as indígenas e seus familiares sofrem cotidianamente ameaças e coerção por uma rede que envolve Poder Público, fazendeiros e outras forças econômicas e políticas da região – todos envolvidos e beneficiários dos arrendamentos. A partir disso, decorre a hipótese de o assassinato de Estela estar relacionado ao conflito com produtores de soja, de gado e arrendatários.

Já para a polícia, o crime se trata de feminicídio. De fato, as mulheres Guarani e Kaiowá estão completamente desprotegidas em situações de violência.  Sob Bolsonaro, o Brasil viveu a explosão ainda maior de casos de feminicídio, violência doméstica, misoginia, lesão corporal dolosa e ameaças contra mulheres. Liderando também as retomadas de terra, muitas mulheres se tornam alvo da violência dos pistoleiros, como foi o caso da rezadora Xurite Lopes, assassinada aos 70 anos de idade em 2007.

Ainda há também a hipótese de intolerância religiosa. O conluio de Bolsonaro com pastores bilionários, donos de franquias de igrejas evangélicas, submeteu a sociedade brasileira a uma tresloucada polarização entre seus seguidores e o restante do povo brasileiro, abrindo feridas cuja cicatrização ainda parece um sonho distante. No estado de Mato Grosso do Sul, as igrejas com perfil mais conservador acabaram funcionando como correia de transmissão do ideário violento e genocida de Bolsonaro, também dentro das aldeias, promovendo mais perseguições contra rezadoras e rezadores.

Como se não bastasse, a sociedade brasileira está 600% mais armada do que antes da política de liberação de armas de Bolsonaro. São um milhão de armas a mais espalhadas por todo o país. Além de clubes de tiro por toda parte, assistimos a uma polícia conivente com ações terroristas que assolam as ruas neste final de 2022, nos dias que antecedem a posse do novo presidente eleito.

Das mãos de Bolsonaro, diante de um cenário de terra arrasada, Lula receberá a carcaça desmontada de praticamente toda a estrutura institucional de apoio do Estado brasileiro aos indígenas.

Seja disputa fundiária, misoginia ou intolerância religiosa, as digitais deste crime vêm das mãos dos capitalistas. Muitos deles, hoje aninhados no governo agro-miliciano de Bolsonaro, há décadas vêm assolando as aldeias, junto a milícias rurais, comprimindo os indígenas em territórios diminutos e cada vez mais escassos de qualquer tipo de recursos.

Nos somamos, cada vez mais, a vozes indígenas que clamam por paz nas aldeias. Somente a união de todos os povos no Brasil contra o latifúndio, o arrendamento, o agronegócio, o capitalismo e o patriarcado poderá enfrentar efetivamente os crimes covardes contra as mulheres. Exigimos, ainda, justiça e que as autoridades cumpram, com celeridade, as devidas investigações.

Lamentamos profundamente a morte de Estela. Abrimos nossos braços a parentes, amigas, amigos e a toda a comunidade do tekoha Yvy Katu, território onde Estela tombou, levando consigo todos os seus tesouros tradicionais, que não mais serão repassados a filhos e netos. Agora, diante do corpo de nossa companheira, ficamos em silêncio profundo. Mas será preciso rompê-lo, em nome da vida.

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