Rezadeira, indígena Estera Verá foi morta de maneira violenta e o crime continua sem solução |
A
indígena Estela Verá, de 67 anos, era uma importante rezadora
Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Familiares confirmaram a
morte da idosa assassinada a tiros por homens encapuzados na frente
do próprio filho, na tarde de quinta-feira (15), na Aldeia Porto
Lindo, localizada na cidade de Japorã (MS), a 452 km de Campo
Grande. O caso, registrado como feminicídio, é investigado pela
Polícia Civil. O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Mato
Grosso do Sul, Matias Benno, descreve Estela Verá como “um pilar
da cultura e uma índigena super importante”.
“Era uma pessoa fundamental, que tinha ampla participação na
vida e na recuperação daquele território e também na manutenção
dos aspectos de espiritualidade próxima.”
Além de ser influente na região, a rezadora participou de livro
e filme sobre os povos originários do Brasil. “A ñandesi Estela
Verá sempre foi um pilar na manutenção dos saberes Guarani e
Kaiowá e lutou a vida toda pela valorização dos rezadores e
rezadoras”, detalha uma publicação da página do filme “Yvy
Pyte - Coração da Terra”, que teve a participação da indígena.
O coordenador do Cimi em Mato Grosso do Sul ressalta o
impacto da perda da rezadora. “Ela era uma base firme, ou seja,
junto com outros rezadores que foram falecendo era uma pessoa de
inestimável valor para a comunidade, para os jovens, para a
perpetuação do modo de ser da comunidade”, afirma Matias Benno.
Verá também esteve presente na edição 2011-2016 da série
“Povos Indígenas no Brasil”, lançada pelo Instituto
Socioambiental (ISA). A indígena conversou com a antropóloga
Lauriene Seraguz e teve texto traduzido por ela em conjunto com Jacy
Vera.
Leia a seguir um trecho do texto de Estela Verá:
“Se não tiver mais reza e rezador, o mundo vai acabar. Tudo vai
acabar, os sinais de que o mundo está acabando já estão
aparecendo. Hoje temos menos rezadores (opuraheiva), chuvas sem
limite. Está tudo fora do tempo.
No mundo todo está acontecendo isso, não é só no Brasil. Aqui
estamos um pouco mais protegidos porque ainda temos opuraheiva. Tudo
vai estar perdido. Os cantos hoje estão muito mais curtos (mbyky) do
que eram antes e os seres humanos estão morrendo muito antes nos
tempos de hoje. Pelo jeito vai continuar assim, por causa do canto
curto, que não é mais como o antigo (longo, puku).
Vivo com a minha reza ainda pela vida dos inocentes, pois ainda
aparecem crianças que esperam muitas coisas de mim. Por isso tenho
forças para continuar a minha vida como opuraheiva.
Se hoje o mundo ainda não acabou é pela vida destes inocentes,
pois, do mesmo jeito que o Kuarahy (Sol) ilumina a gente, ele pode
sumir e acabar com tudo. Isso vai acontecer quando acabarem os
opuraheiva. Kuarahy pode fazer uma troca e nos devolver o que fizemos
contra terra, para então, renovar e começar tudo de novo. […]”
DE QUEM SÃO AS DIGITAIS DO ASSASSINATO
O
assassinato da indígena Estela Vera Guarani, de 67 anos, é um
acontecimento estarrecedor. É o quinto homicídio de indígenas
Kaiowá e Guarani em áreas de conflito em Mato Grosso do Sul,
somente em 2022. E isso parece estar longe de acabar. Rezadora
tradicional e liderança em sua aldeia, Estela foi morta a tiros no
dia 15 de dezembro. Estava em casa com seu filho quando, às 15h,
dois homens encapuzados e armados entraram e os atacaram. Tentaram
fugir, mas Estela foi atingida pelos disparos.
No local, foram encontrados pela polícia cartuchos de arma
calibre 36, de uso mais comum em espingardas de caça. Até agora,
ninguém foi preso, e outros detalhes da morte permanecem
inexplicados. Entidades e parlamentares do estado estão cobrando
atenção ao caso. Se os detalhes do crime ainda permanecem ocultos,
o contexto onde ele ocorreu é de conhecimento geral. Trata-se do
problema estrutural da falta de terra.
Enquanto aguardam a demarcação de suas terras ser efetivada pelo
Estado, os Guarani e Kaiowá vêm sofrendo profundamente, há
décadas, todos os males que a subtração do território e da
floresta poderia causar em suas vidas. Apinhados em pequenas
reservas, e expostos à enorme pressão do agronegócio, os
territórios indígenas padecem de uma epidemia de violência,
escalando cada vez mais nas comunidades.
Durante os anos de governo Bolsonaro, a falta de terra aprofundou
avassaladoramente a relação de dependência das comunidades
indígenas e camponesas ao agronegócio. No Mato Grosso do Sul, os
indígenas foram abandonados à fome pelo atual presidente. Centenas
de famílias dependem de cesta básica para sobreviver, e a Fundação
Nacional do Índio (Funai) não está realizando a entrega – ou
realiza de quatro em quatro meses, projetando cenas de mães e
crianças desesperadas. Produtores de soja, aproveitando-se da fome,
têm arrendado áreas ilegalmente dentro dos territórios Guarani e
Kaiowá.
Estela era conhecida por lutar contra os arrendamentos, inclusive
ao lado de outras lideranças femininas ameaçadas de morte e que já
sofreram agressões, como é o caso de Kuña Kuarahy. As duas fazem
parte de um corajoso movimento que se opõe aos arrendamentos no
tekoha Yvy Katu, local onde Estela foi assassinada. Por resistirem ao
arrendamento, as indígenas e seus familiares sofrem cotidianamente
ameaças e coerção por uma rede que envolve Poder Público,
fazendeiros e outras forças econômicas e políticas da região –
todos envolvidos e beneficiários dos arrendamentos. A partir disso,
decorre a hipótese de o assassinato de Estela estar relacionado ao
conflito com produtores de soja, de gado e arrendatários.
Já para a polícia, o crime se trata de feminicídio. De fato, as
mulheres Guarani e Kaiowá estão completamente desprotegidas em
situações de violência. Sob Bolsonaro, o Brasil viveu a
explosão ainda maior de casos de feminicídio, violência doméstica,
misoginia, lesão corporal dolosa e ameaças contra mulheres.
Liderando também as retomadas de terra, muitas mulheres se tornam
alvo da violência dos pistoleiros, como foi o caso da rezadora
Xurite Lopes, assassinada aos 70 anos de idade em 2007.
Ainda há também a hipótese de intolerância religiosa. O
conluio de Bolsonaro com pastores bilionários, donos de franquias de
igrejas evangélicas, submeteu a sociedade brasileira a uma
tresloucada polarização entre seus seguidores e o restante do povo
brasileiro, abrindo feridas cuja cicatrização ainda parece um sonho
distante. No estado de Mato Grosso do Sul, as igrejas com perfil mais
conservador acabaram funcionando como correia de transmissão do
ideário violento e genocida de Bolsonaro, também dentro das
aldeias, promovendo mais perseguições contra rezadoras e rezadores.
Como se não bastasse, a sociedade brasileira está 600%
mais armada do que antes da política de liberação de
armas de Bolsonaro. São um milhão de armas a mais espalhadas por
todo o país. Além de clubes de tiro por toda parte, assistimos a
uma polícia conivente com ações terroristas que assolam as ruas
neste final de 2022, nos dias que antecedem a posse do novo
presidente eleito.
Das mãos de Bolsonaro, diante de um cenário de terra arrasada,
Lula receberá a carcaça desmontada de praticamente toda a estrutura
institucional de apoio do Estado brasileiro aos indígenas.
Seja disputa fundiária, misoginia ou intolerância religiosa, as
digitais deste crime vêm das mãos dos capitalistas. Muitos deles,
hoje aninhados no governo agro-miliciano de Bolsonaro, há décadas
vêm assolando as aldeias, junto a milícias rurais, comprimindo os
indígenas em territórios diminutos e cada vez mais escassos de
qualquer tipo de recursos.
Nos somamos, cada vez mais, a vozes indígenas que clamam por paz
nas aldeias. Somente a união de todos os povos no Brasil contra o
latifúndio, o arrendamento, o agronegócio, o capitalismo e o
patriarcado poderá enfrentar efetivamente os crimes covardes contra
as mulheres. Exigimos, ainda, justiça e que as autoridades cumpram,
com celeridade, as devidas investigações.
Lamentamos profundamente a morte de Estela. Abrimos nossos braços
a parentes, amigas, amigos e a toda a comunidade do tekoha Yvy Katu,
território onde Estela tombou, levando consigo todos os seus
tesouros tradicionais, que não mais serão repassados a filhos e
netos. Agora, diante do corpo de nossa companheira, ficamos em
silêncio profundo. Mas será preciso rompê-lo, em nome da vida.