Adriano Karipuna, liderança indígena de Rondônia (Agência Brasil) |
Um dos
menores e talvez mais antigos povos indígenas do Brasil, os karipuna
de Rondônia têm atualmente apenas 62 integrantes e sua luta
por direitos não tem ganhado visibilidade.
Conforme o Instituto Socioambiental (ISA), em 2004, o povo
karipuna era composto por apenas 14 "sobreviventes". O
termo define com precisão o que se passou com eles e os
assombra até hoje, já que resistiram ao ciclo da borracha, à
gripe, à pneumonia e a inundações de seu território, localizado
entre os municípios de Porto Velho e Nova Mamoré. A primeira
inundação ocorreu em 2014 e a última, recentemente, em março
deste ano, provocando a queda de uma das pontes de acesso à
comunidade, informou o Ministério Público Federal (MPF).
Atualmente, eles enfrentam o assédio de madeireiros e
grileiros, relatou o
cacique da aldeia, André Karipuna. Quanto às inundações, o MPF
suspeita que sejam resultado do funcionamento das usinas
hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.
Os karipuna de Rondônia se organizam em torno de somente uma
aldeia, a Panorama. A terra indígena (TI) fica próxima aos rios
Jaci-Paraná e Formoso, foi demarcada em 1997 e homologada em 1998,
com 152.930 hectares. São cerca de 40 mil hectares a menos do
que a proposta inicial, área no lado sul que foi invadida por
colonos e entregue por um acordo entre a Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai), o governo estadual e o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Conforme os
pesquisadores Josélia Gomes Neves, Mary Gonçalves Fonseca e
Cristovão Teixeira Abrantes, em artigo
divulgado neste ano, os primeiros registros desse povo datam
de 1745, sendo que os estudos pouco se ampliaram.
O cacique karipuna destaca a gravidade da situação, com o risco
de extinção de seu povo. Ainda que o cenário dos karipuna de
Rondônia tenha atingido a linha do inaceitável, órgãos do Estado,
"principalmente os de proteção do meio ambiente, como a
Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama)", segundo André, têm virado as
costas e deixado de prestar socorro. "Não é de agora isso.
Todos os órgãos competentes têm ciência, sabem disso. Um tempo
atrás, chegamos a ser oito pessoas e agora estamos na fase de
crescimento [populacional]. A gente vê isso com uma preocupação
muito grande", lamentou.
Os karipuna de Rondônia, que se distinguem, aliás, dos karipuna
do Amapá - já não contam mais com lideranças espirituais. Além
disso, há pouca documentação de pesquisadores sobre esse povo, o
que reduz a percepção sobre o nível de perigos, dificultando
a cobrança de ações do Poder Público. Outra consequência é que
fica reservado a eles um lugar de esquecimento de sua cultura e seu
modo de viver.
Na página que
o ISA dedica aos karipuna de Rondônia está escrito o seguinte:
"Aparentemente, os remanescentes karipuna são advindos de dois
grupos locais (malocas): o de Jacaré’humaj e o de Tokwa. Mas a
situação atual dos Karipuna, nem mesmo remotamente, lembra aquela
antes do contato. Outros grupos da região, depois do impacto inicial
do contato, conseguiram refazer (ou ainda estão refazendo, como os
Uru-Eu-Wau-Wau) sua demografia e, com isso, mantiveram os padrões
principais de sua organização social. O
problema demográfico pós-contato, ocorrido entre os
Karipuna, não lhes deu qualquer chance de reprodução de suas
estruturas de organização tradicionais". Eles já perderam
parte significativa dos costumes dos antepassados, em um caminho
sem volta.
Os primeiros testemunhos sobre os karipuna de Rondônia
chamavam-nos de "Bocas Pretas", por causa das faixas de
jenipapo ao redor da boca, tradição também entre os
uru-eu-wau-wau e outros grupos tupi kawahibi. Eles se autodenominam
ahé (“gente verdadeira”) e falam uma língua da família tupi
guarani, dominando também a língua de grupos com os quais convivem,
como tupi kawahibi e mawé.
Fazem parte do dia a dia dos karipuna de Rondônia a pescaria
e a caça. E também o plantio de arroz, feijão, mandioca, milho e
frutas próprias de sua dieta, como o buriti e a bacaba, usadas em
rituais e festas. A fabricação de farinha e a coleta de castanha
são fontes de renda. Esses meios de subsistência, porém, estão
sob ameaça, devido à presença dos invasores no território. O
solo, que antes servia ao cultivo de itens da medicina tradicional,
agora dá lugar, sem sua permissão, ao pasto. Outra perda são os
lugares sagrados.
De acordo com informações do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), em maio de 2017, ano em que a invasão já havia aumentado, a
Funai desocupou um posto de fiscalização localizado na entrada da
TI, que foi aberto com recursos de compensação ambiental da obra da
Usina Hidrelétrica de Santo Antônio. O gerador de energia
elétrica do posto foi roubado, a unidade foi incendiada e as
placas foram arrancadas. "O procurador Daniel Azevedo Lôbo
estranha 'a coincidência' da desativação do posto da Funai com o
início do chamado verão amazônico, caracterizado pela estiagem,
que facilita as ações de retirada de madeira e desmatamentos",
acrescenta, em matéria, a entidade.
Luta com peixe grande
A matéria da organização lembra que, até o ano 2000, a
área de desmatamento da terra indígena era de 342 hectares.
Nos primeiros oito meses de 2017, 1.045,76 hectares de floresta
haviam sido derrubados.
Uma das pessoas da comunidade que detêm o conhecimento da
mitologia de seu povo e têm estado à frente de mobilizações é o
estudante de direito Adriano Karipuna, que também usa o nome
Tangare’i e. Os karipuna creem, por exemplo, na existência do que
não indígenas entendem como “céu”, que denominam ywagá e que
se assemelha aos moldes da vida na terra, com a possibilidade de
casamento entre eles e atividades como a caça, mas sem armas de
fogo.
Tangare'i publicou, recentemente, o livro Da Floresta para o
Mundo, em que narra o processo de deixar a aldeia Panorama para
defender os direitos de seu povo, ao redor do mundo. Ele perdeu o pai
aos oito anos de idade e, aos 16, já era um dos porta-vozes dos
karipuna. Desde então, apresentou denúncias até mesmo à
Organização das Nações Unidas (ONU), com o apoio do Greenpeace e
o Cimi, e a entidades do Peru. "Em 2019, denunciei isso no
Vaticano, no Partido Verde alemão. Fiquei quase dois meses fora,
estive no Parlamento Europeu", relata. "Levei essa
preocupação, dizendo que estava denunciando esses ataques vindos da
força política. Porque estão vindo da força política. Dizendo
que não aceitamos a tese do marco temporal."
Para Adriano, o que se fez, ao reduzir a área da TI na
demarcação, foi "premiar os invasores, como sempre". Os
loteamentos, afirma, são frutos da ação de pessoas e grupos com
poder econômico e de influência, para o cultivo de soja e café,
mas também para a pecuária, com "bois piratas", e a
piscicultura, que surgem depois que os invasores extraem madeira para
repassar a serrarias da região. Um dos pastos, acrescenta ele,
que sobrevoou a área no ano passado, fica a apenas três
quilômetros.
"Eles dizem que é o pequeno agricultor. O pequeno
agricultor, na região, não consegue destruir o tamanho da floresta
que ele destruiu, até porque não tem corpo técnico nem orçamento
para isso. Então, é uma mentira que esse povo está vendendo. É
peixe grande, porque, se você for ver, como é que o pequeno
agricultor, que tem renda de até R$ 3 mil, vai abrir uma estrada no
meio da Floresta Amazônica, no meio do nada, de quilômetros e
quilômetros, sem máquina pesada? Dentro de três meses, é isso que
eles fazem. Então, essa mentira cai por terra. Há, por trás disso,
grandes autoridades", afirma Adriano. Ele cita as articulações
do governo e da Assembleia Legislativa de Rondônia para reduzir a
área de unidades de conservação, como ocorreu com o Projeto de Lei
Complementar 080/2020, que previa a exclusão de 171 mil hectares da
Reserva Extrativista Jaci-Paraná, reduzindo-a em quase 90%, e a
retirada de 55 mil hectares do Parque Estadual de Guajará-Mirim. "E
essas unidades estão no entorno das terras indígenas, não só a
dos karipuna".
O líder indígena comenta que já aconteceu de autoridades
envolvidas com os invasores mandarem a ele recados de ameaça, como
também a companheiros seus, e de tentarem colocá-lo no centro
de emboscadas, que sempre falharam. Para tentar surpreendê-lo, os
invasores chegaram a derrubar árvores no trajeto que faz até a
aldeia, para deixá-lo mais vulnerável e impedi-lo de escapar.
"A minha visão, com relação a tudo isso, é que o governo
brasileiro, e aí eu digo estadual e federal, cumpriu pouca coisa
quanto à proteção do território indígena karipuna, a integridade
física dos karipuna, porque nós já sofremos ameaças",
declara.
"Nós, karipuna, estamos nos sentindo muito cansados, porque
não há mais como denunciar ao Ministério Público Federal
(MPF). Nós ajuizamos ação civil pública, que até agora não foi
cumprida", conta, em relação à ação aberta, em 2018, contra
a União, a Funai, o Ibama e o governo de Rondônia, por meio da qual
pressionaram para garantir o afastamento dos invasores e a
reativação do posto de vigilância. "Há 89 cadastros
rurais [propriedades que constam do Cadastro Ambiental Rural] e já
tem o nome das pessoas. Isso está na Justiça."
O constante estado de prontidão e luta tem provocado exaustão em
Adriano. "Eu sempre digo, parem de romantizar a luta dos povos
indígenas que estão sofrendo. Estou revoltado, porque espero há
muito tempo."
Solidão na luta
Apesar da ausência do Poder Público no território dos karipuna,
há figuras que estendem a mão, buscam fortalecer o apoio em tarefas
do dia a dia e compor, com eles, a frente de resistência,
denunciando o que acontece e atenuando a sensação de desamparo. É
o caso da irmã catequista franciscana Laura Vicuña, do Cimi e
do MPF, que têm se somado ao coro que pede providências com
urgência. A Embaixada da Alemanha também contribuiu, a partir da
instalação de aparatos de energia solar na aldeia Panorama.
"De 2015 para cá, o povo vem sofrendo muitas invasões,
sobretudo na época da PEC [Proposta de Emenda Constitucional] 2015",
recorda Laura, em referência à proposta do deputado federal
Almir Sá (PP-RR), que pretendia deixar, exclusivamente ao Congresso
Nacional a competência de realizar processos de demarcação de
territórios indígenas e quilombolas. "O que mais preocupa é a
grilagem de terra, em que os invasores buscam legitimar a posse,
inclusive com delegações indo a Brasília."
A missionária lembra ainda que, no auge da pandemia de
covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em atendimento
à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709,
movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a
retirada dos invasores da TI Karipuna, em agosto de 2020. A
determinação foi novamente ignorada.
"Você vai a uma aldeia nova que o povo estava querendo
começar. Na porta da casa, está escrito: Amigo, fica de boa, tá?
Isso é uma ameaça velada. Área desmatada de um lado, área
desmatada de outro e esse recado na porta", conta Laura.
André Karipuna diz que os dias, hoje são preenchidos por
aflição, diferentemente do que viveu quando tinha menos idade. "O
que eu tinha quando era criança era muita alegria, paz, muito
sossego. Porque eu era criança, mas também porque o nosso
território não era invadido. Tinha os órgãos competentes muito
fortalecidos, e jamais eu esperava e pensava que isso ia acontecer.
Era muito boa a minha infância, creio eu, como todos nós, karipuna.
Não tinha esses problemas todos no dia a dia e no território."
O outro lado
Em resposta a solicitação da Agência Brasil,
o Ministério da Justiça e Segurança Pública disse que "a
retirada dos invasores da TI Karipuna faz parte do plano de
desintrusão apresentado pelo governo federal no âmbito da ADPF
709". "O plano envolve a articulação de diversos órgãos,
assim como ocorreu na TI Yanomami, e será executado de acordo com o
pactuado nessa ação. A Polícia Federal segue
investigando e apurando denúncias de invasão no território para
assegurar o cumprimento da lei."
Em nota, a Santo Antônio Energia afirma que "nenhuma
terra indígena sofre impacto direto pela implantação da
hidrelétrica", que já implementou ações "que minimizam
possíveis impactos indiretos" à TI Karipuna e aguarda
tramitação da segunda fase do planejamento para colocá-la em
prática. "A Terra Indígena Karipuna (aldeia Panorama) está
localizada a cerca de 20 quilômetros do reservatório da
Hidrelétrica Santo Antônio e, portanto, não há possibilidade de
ter sido afetada por sua implantação ou operação. Uma estação
de monitoramento no Rio Jaci-Paraná, em um ponto entre a terra
indígena e o distrito de Jaci-Paraná, indica que houve aumento
significativo da vazão, resultante das fortes chuvas ocorridas. O
alagamento na região foi causado pela limitação de escoamento do
solo em casos de chuvas atípicas, resultando no transbordamento da
calha do rio", destaca na nota.
A reportagem também procurou a
Funai, o Ibama, o governo de Rondônia e a administração da usina
hidrelétrica de Jirau, mas não houve retorno até o fechamento
desta reportagem. (Agência Brasil)