Direitos humanos diz que genocídio no campo avança em Rondônia

"Cada liderança que tomba, leva consigo acordos organizativos e afetivos, leva um poder social que insurgia em seu corpo rebelado", descreve relatório
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FRANCISCO COSTA
9 maio 2023
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Lançamento caderno de conflitos agrários 2022 e relatório de direitos humanos (@FCostaReal)

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) organismo ligado a igreja católica lançou na manhã desta segunda-feira, 08, no auditório do Ministério Público Estadual (MPE), o caderno de conflitos agrários de 2022. E no mesmo ato foi tornado público o relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre violações contra cidadãos.

O evento contou com a participação de indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, camponeses, movimentos sociais e representações de organismos públicos. 

BANHO DE SANGUE

Durante o último ano, nossa reportagem acompanhou os principais conflitos no campo e foi um dos únicos meios de comunicação que divulgou informações. 

Em 2022 em Rondônia foram registrados 5.436 conflitos por terra, 45 denúncias de trabalho escravo rural com 31 resgates, 644 disputas por água e 131 ocupações foram retomadas. 

No estado os casos de violência contra pessoa somaram 7 assassinatos, 12 tentativas envolvendo 123 pessoas, 19 ameaças e 72 vítimas presas. Em todo país totalizaram 2.018 disputas que afetaram mais de 909.450 pessoas. 

Desde 2019, os povos indígenas aparecem nos registros da CPT como a categoria que mais tem sofrido ocorrências de violências nos conflitos por terra. Em 2022 eles seguiram em evidência. Do total de ocorrências registradas, 28% envolveram povos originários. Em seguida, está a categoria posseiro, envolvida em 19% dos registros de conflitos por terra. Logo depois estão comunidades quilombolas (16%), sem terras (12%) e famílias assentadas da reforma agrária (9%).

OS CAUSADORES

Os dados também apresentam os principais causadores desses conflitos. No ano passado, os fazendeiros foram responsáveis por 23% das ocorrências de conflito por terra, seguidos do governo federal, com 16%; empresários, com 13%; e grileiros, com 11%.

A principal mudança em relação ao ano de 2021 foi o crescimento da participação do governo federal nos conflitos por terra, que saltou de 10% para os já mencionados 16%. O tipo de violência mais grave levantado pela CPT foi a invasão de territórios, que afetou 95.578 famílias em todo o país, e mais: dos 47 assassinatos no campo registrados em 2022, 14,89% estavam associados a esse tipo de violência. Em 2021, esse número foi de 5,56%. 

Segundo o levantamento Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT), as invasões de territórios vêm crescendo no país, sobretudo a partir de 2019, com o início do governo Bolsonaro. Entre 2013 e 2022, houve 1.935 ocorrências de invasões de territórios no Brasil. Porém, somente nos anos do governo bolsonarista, foram registradas 1.185 ocorrências desse tipo de violência, o equivalente a 61,25% dos registros da década. 

Do total de 661 Terras Indígenas invadidas na última década, 411 das ocorrências se deram entre 2019 e 2022. Ao todo, 30.624 famílias sofreram ações de pistoleiros em 180 ocorrências, com aumento de 32% no número de famílias e 86% no número de registros em relação a 2021. Em 2022, 27,66% dos assassinatos estavam ligados a alguma ocorrência de pistolagem. Em 2021, a porcentagem foi de 11%. Os dados indicam que a prática de pistolagem no campo emerge em contextos de ausência de mediação ou atuação do Estado para solucionar ou mitigar os conflitos no campo.

AMAZÔNIA LEGAL

O último governo, que se encerrou no dia 31 de dezembro de 2022, resultou em um saldo preocupante para o país, no que diz respeito à violência no campo. No ano de 2022, foram registrados 1.107 conflitos no campo, na região da Amazônia Legal, o que representa mais da metade de todos os conflitos ocorridos no país (54,86%).

Esse número é o segundo maior já registrado pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT), ficando atrás apenas de 2020. A região da Amazônia Legal tem sido marcada por um crescente número de conflitos por terra nos últimos dez anos, com agravamento da situação após 2016.

Dos 47 assassinatos no campo registrados no Brasil em 2022, 34 ocorreram na Amazônia Legal, o que representa 72,35% de todos os assassinatos no país. A questão dos conflitos por terra na região da Amazônia Legal não acomete apenas as estatísticas de ocorrências, mas também o número de famílias envolvidas. Nos últimos dez anos, o número de famílias afetadas pelos conflitos aumentou de forma significativa, ultrapassando a marca de 100 mil após 2018. 

TRABALHO ESCRAVO

O Cedoc-CPT contabilizou, em 2022, 207 casos de trabalho análogo à escravidão no meio rural, com 2.618 pessoas envolvidas nas denúncias e 2.218 resgatadas, o maior número dos últimos dez anos. Em comparação ao ano anterior, o aumento foi de 29% no número de pessoas resgatadas e 32% no número de casos.

VIOLÊNCIA CONTRA PESSOA

O ano de 2022 foi marcado pelo elevado crescimento do número de violência contra a pessoa. Foram 553 ocorrências, que vitimaram 1.095 pessoas. O número de casos é 50% maior do que o registrado em 2021 (368, com 819 vítimas). O registro desta categoria abrange todos os eixos de conflitos, sendo eles terra, água, trabalhista e outros conflitos. Em 2022 ocorreram 47 assassinatos por conflitos no campo, um crescimento de 30,55% em relação a 2021 (36) e 123% em comparação com os dados registrados em 2020 (21). 

CRIANÇAS E ADOLESCENTES AMEAÇADOS

Ao analisar os assassinatos em conflitos no campo, percebe-se que crianças e adolescentes passaram a estar na mira deste tipo de violência durante o governo Bolsonaro. De 2019 a 2022, nove (09) adolescentes e uma (1) criança foram mortos no campo. Destes, cinco (5) eram indígenas. Essa tendência alarmante sugere uma tentativa de aniquilar o futuro do país, bem como a permanência dos povos originários e camponeses em seus territórios.

Chamam a atenção, ainda, as mortes em decorrência de conflitos. Em 2022, dos 113 registros de morte em consequência obtidos, 103 foram em Terra Indígena Yanomami, e destes, 91 eram crianças, representando 80,5% dos casos. Estes números foram baseados em denúncia revelada pelo portal Sumaúma neste ano de 2023, obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), que apresentou números ainda mais altos de mortes evitáveis de indígenas Yanomami desde 2019, além das divulgadas por lideranças da Associação Hutukara em 2021, e contabilizadas pela CPT naquele ano. 

AGROTÓXICOS

No âmbito geral das violências sofridas pelas pessoas no eixo terra, verifica-se o aumento dos casos de contaminação por agrotóxicos. Se em 2021, já havia sido registrado uma grande elevação deste tipo de violência, passando de 2 casos em 2020, para 71, no ano de 2022 o número é ainda maior. Foram 193 pessoas atingidas, um crescimento de 171,85%. Além disso, é importante destacar que essa forma de violência também acompanhou o aumento de famílias afetadas conforme registrado nas violências contra a ocupação e posse: 6.831 famílias foram atingidas pela aplicação de veneno, 86% a mais que 2021 e o maior número registrado pela CPT desde 2010, quando esse tipo de violência passou a ser apurada pela Pastoral.

CRIMES IMPUNES EM RONDÔNIA

Em Cacoal no acampamento Tiago Santos no dia 13 de janeiro de 2022, Jeferson Nunes de Souza, 27, sem terra foi assassinado. 

Em 17 de junho o assentado Wesley Flávio da Silva, 37, foi executado em Campo Novo de Rondônia. Em Cujubim dois crimes no mesmo dia: Normande Mariano Barbosa, 46, e Jheilson Batista Pecla Cordeiro, ambos trabalhadores assalariados e soldados da borracha. 

Em Porto Velho também dois crimes em um mesmo dia: Ilma Rodrigues dos Santos, 45, e Edson Lima Rorigues, 43, no Acampamento Tiago Santos. E o ano encerrou com a morte e Josias Vicente Marfra, 65 anos, sem terra de Seringueiras. Maioria dos crimes continuam impunes e sem solução.

No ano anterior, 2021, a falta de políticas públicas de reforma agrária, direitos humanos, ambiental e justiça fez 11 vítimas fatais. Em Rondônia mais de 25 lideranças estão no programa de proteção de defensores de direitos humanos. 

DIREITOS HUMANOS

"Precisamos contribuir na construção de uma agenda comum de proteções, salvaguardas e reparações socioambientais, já que as ameaças e violações de direitos ocorrem sistematicamente e em bloco. O que está em questão hoje, na Amazônia, e particularmente em Rondônia, é a criação paraestatal e paramilitar de dispositivos perpetradores de genocídios e de ecocídios continuados. Não se trata aqui de eventos isolados, mas de um método que reorganiza os processos produtivos sob impulso da máxima rentabilização, apelando para a sintetização de povos e territórios na forma de custos e riscos financeiros". A afirmação é do relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) referente agosto de 2022. 

E o documento continua. "Uma agenda comum, neste cenário, pressupõe, desarmar verdadeiras "bombas" instaladas na Amazônia, como o sinal verde para o garimpo e a mineração nas terras indígenas, a regularização de grandes áreas griladas, desembocando no incremento de assassinatos e perseguições de lideranças indígenas, extrativistas e camponesas. Para que seja possível pleitear uma repactuação territorial na Amazônia, é preciso reconhecer que há uma guerra por terra, água e território na região. E a pacificação de tantas violências somadas depende da responsabilização dos atores econômicos que delas se beneficiam. Ressalta-se que não pode haver agenda de direitos sem que se garanta a proteção e o respeito aos defensores ambientais de direitos. Cada liderança que tomba, leva consigo acordos organizativos e afetivos, leva um poder social que insurgia em seu corpo rebelado. Os defensores de direitos na Amazônia cumprem uma missão civilizatória, ao propor espaços de consulta, participação e também de recusa, registrando violações e cuidando das futuras reparações".

O relatório recomenda que o estado crie um plano de direitos humanos, programa de proteçao para as vítimas e faça investimentos no mecanismo de prevenção e combate a tortura. No Tribunal de Justiça foi criado a Comissão de Conflitos Agrários que agem em casos judicializados coletivos, mas sua composição não tem participação social. As lideranças querem que essa Comissão faça inpeções antes de assinar senteças judiciais. 

O CNDH disse que era preciso estabelecer políticas públicas e ações de paz e justiça nos principais territórios em conflito de Rondônia:

Ao longo da Rodovia 429 e seus ramais, o conjunto de TIs e Unidades de Conservação do Vale do Guaporé estão sendo invadidos e devastados. 

Ao longo da Rodovia 420/421, o mesmo processo destrutivo acelerado está ocorrendo.

A região de Machadinho do Oeste e Cujubim, no norte do Estado, é outro alvo preferencial de desmatadores, grileiros e invasores de terras protegidas.

No eixo da BR 364 em direção ao Acre, assim como nos entornos dos reservatórios das UHEs Santo Antônio e Jirau, a devastação e os conflitos se intensificaram ainda mais nos últimos anos. 

FALAS

Diante do cenário a Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado de Rondônia, Valdirene de Oliveira, disse que era preciso estabelecer compromisso institucional para que o direito de todos no campo fosse respeitado. "O cenário é agravante. Rondônia é o estado onde mais matam lideranças no campo". 

"O relatório (do CNDH) é muito grave. E muito pouco foram os avanços. Os empreendimentos ameaçam a fauna e a flora", destacou a advogada gaúcha Marina Ramos Dermmam, vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

"Nem todas as violações chegam até a CPT. O caderno de conflito agrários é uma amostra do que acontece. E nós precisamos de respostas, de esperança e de transformação", declarou Maria Petronila coordenadora da CPT, organização há 40 anos no estado. 

"O sistema de justiça tem que atuar. Continuamos no tempo das mortes, ameaças e perseguições", comentou João Dutra advogado popular que integram o Movimento do Atingidos por Barragens (Mab). 


Evento no MPE debate futuro dos direitos humanos e fim dos conflitos agrários (@FCostaReal)

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