Marco Temporal: após vitória no STF, luta dos povos indígenas é por resistência aos próximos ataques do agro

O desafio dos povos tradicionais é grande para preservar seus corpos, territórios e toda ancestralidade
Compartilhe no WhatsApp
FRANCISCO COSTA
22 setembro 2023
0

Povos da Amazônia enfrentam investidas do agronegócio (Foto: Alexandre Cruz-Noronha – Secom/ Gov-Ac)

Pelo visto, ainda há muito o que fazer para que a vitória dos Povos Indígenas seja comemorada com toda dignidade possível num tempo em que seus territórios são invadidos por criadores de gado e plantadores de grãos. A ganância e a sanha impiedosa do agro têm mentido sucessivamente, a ponto de o brasileiro esquecer a própria “descoberta” do País na costa baiana.

O Superior Tribunal Federal (STF) alcançou, quinta-feira, 20, a maioria de votos (9 a 2) para a tese de que o Marco Temporal é inconstitucional. Já o Senado Federal analisa o projeto de lei que fixa o Marco Temporal em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. E daí?

“Foi uma vitória muito importante, não só para os povos indígenas: acho que uma parcela muito grande do povo brasileiro esteve junto nessa luta para que a gente vencesse essa guerra”, afirmou quinta-feira, 21, Francisco Pyãko Ashaninka. Ele é membro da Aldeia Apiwtxa no Acre, e coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj).

Desde os anos 1970, na Amazônia Brasileira, notadamente no Acre e em Rondônia, a grilagem praticada por fazendeiros em terras indígenas resulta em atos violentos e em mortes.

O PL 2.903/2023 foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) no mês passado e agora espera votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em seguida, caberá ao Plenário votar a decisão final. O relator na CCJ é o senador Marcos Rogério (PL-RO).

Vitória em delicado momento

“Dá para ver claramente que o Marco Temporal representa os interesses daqueles que veem o Brasil não com a sua história, como um lugar para o futuro. Talvez estejam no Brasil de passagem, porque realmente negam a história deste País, a existência dos Povos Indígenas, e querem transformar o Brasil num negócio capitalista não moderno, mas atrasado, predador”, lamentou Francisco Pyãko.

Nem bem fora anunciado o resultado da votação no STF, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR) corria para os holofotes para alardear “uma barbárie no campo.”

Além de muitos dos seus representados invadirem terras indígenas, o parlamentar argumentou “que não há previsão de indenização para produtores que perderem suas terras.” Cruel nessa história é que, a (mau) exemplo dos madeireiros do norte do País, agricultores endinheirados do centro-oeste e do Sul fingiram ignorar que o lugar onde plantaram era território que não lhes pertencia.

Exagerado em tenebrosa retórica, Lupion se esqueceu de dizer que grande parte da classe que defende, com o aval do Congresso Nacional, prorroga, todo ano, débitos de financiamentos bancários, sangrando bancos oficiais e prejudicando a pequena clientela.

Essa “garantia para os produtores” por ele já requerida em vídeos nas redes sociais tem evidente caráter duvidoso.

“O momento é delicado, devido à situação climática e o Planeta chegando ao ponto de não retorno”, alertou Francisco Pyãko ao Varadouro. No entanto, se mantém esperançoso: “Se a sociedade como um todo sair de dentro de seus quadrados e começar a olhar para o mundo e a agir, dá para a gente vencer uma luta que é mais global. Quero dizer que estamos muito felizes, mas a luta não acabou: virão outras, porque os ataques aos direitos dos Povos Indígenas e os desafios aos seus direitos continuam: queimaram agora um casal de indígenas Guarani, então haverá sempre aqueles que nunca irão respeitá-los.”

Referiu-se Sebastiana e Rufino, casal de rezadores do povo Guarani e Kaiowá, foram encontrados mortos em meio às cinzas da casa onde moravam segunda-feira (18), na aldeia Guassuty em Aral Moreira, na linha de fronteira entre Brasil e Paraguai, a 359 km de Campo Grande (MS).

“Nesses últimos anos, o STF tem sido o ponto de equilíbrio, o que tem garantido a Justiça; é o firme guardião da Constituição Federal, mantendo este País com a sua Democracia, dando espaço para todos, cumprindo a Lei e fazendo os Direitos serem respeitados”, assinalou.

“Indenizações dos dois lados”

Ivaneide Bandeira Cardoso, Neidinha, fundadora da Kanindé Etnoambiental, disse que o resultado da votação trouxe duas mensagens “muito claras”: “Uma diz que Constituição Federal precisa ser cumprida; que o respeito aos direitos indígenas é um compromisso do Supremo Tribunal e podemos confiar no cumprimento desses direitos; outra, no sentido de ficarmos muito atentos para saber o que vem depois disso.”

Exemplo disso, ela explica, é a proposta de indenização feita pelo setor rural “em benefício dos produtores de boa fé.” “Mas isso nos faz refletir: quando isso acontecer, será que haverá um levantamento a respeito do que foi destruído da terra indígena? É porque quando fazem corte raso para a construção de curral e casas de fazenda também se destrói a natureza. Será que os indígenas serão indenizados pelas madeiras nobres tiradas, por tudo o que foi destruído? Eu defendo que haja, porque do jeito que indenizariam aquilo que chamam de benfeitorias à terra, as benfeitorias dos indígenas são a sua floresta”, questionou.

“Se a pessoa tirou madeira nobre, derrubando e destruindo até igarapés, matou animais, fez um tanto de coisas, eles serão obrigados a restaurar tudo o que destruíram e devolver do jeito era esse ambiente aos indígenas? Eu acredito, então que tem que se pensar em indenizações dos dois lados.”

Séculos de injustiça

Vera Olinda, coordenadora executiva da Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), disse que a decisão do STF é “uma vitória histórica dos povos indígenas.” “A tese do Marco Temporal é inconstitucional e o STF trouxe senso histórico, responsabilidade e segurança institucional e jurídica para todo o País.”

Para ela, o resultado da votação “é um peso a menos na permanente batalha dos povos indígenas para manter seus direitos.”

“Precisamos ecoar no Brasil que os Povos Indígenas reconquistaram seus territórios com muita luta e que hoje têm o que sempre lhes pertenceu; que carregam séculos de injustiça, mas ainda assim mantém um precioso patrimônio de florestas em diferentes biomas, especialmente na Amazônia, que tem a maior floresta tropical do mundo e guarda a maior riqueza da sociobiodiversidade”, apelou.

Acrescentando: “Toda a sociedade brasileira precisa entender que isso não se associa a áreas de produção por lucro desenfreado, que detona e esgota recursos naturais; essa lógica tem que ser superada.”

Karipuna

“Nós, Povo Karipuna, estamos sofrendo grande ameaça de madeireiro, e isso faz oito anos. Estamos sendo impactados: impacto social, ambiental e cultural”, lamentou André Karipuna ao tomar conhecimento do resultado da votação.

“Fizemos várias denúncias, mas o momento ainda é difícil porque somos poucos; prosseguimos na luta e na resistência contra essa situação, mesmo assim estamos preocupados porque somos minoria”, alertou.

Madeireiros vêm repelando árvores nobres da T.I. Karipuna, fato denunciado diversas vezes por esse povo e pelo ex-bispo da Diocese de Guajará-Mirim, dom Geraldo Verdier. A Polícia Federal tem relatórios da situação. Estima-se que desde nos anos 1980, mais de 60 mil metros cúbicos de madeira de lei saíram criminosamente da T.I. Karipuna.

Da mesma forma, na beira da estrada interna na T.I.Karitiana, no município de Porto Velho, há marcas da presença de ladrões de madeira. Até zombam daqueles indígenas, atirando em placas ali colocadas pela antiga Funai.



Siga no Google News

Postar um comentário

0Comentários

Postar um comentário (0)

#buttons=(Ok, estou ciente!) #days=(20)

Nosso site usa cookies para melhorar a experiência de navegaçãoSaiba Mais
Ok, Go it!