Santo Antônio, antes e depois: impactos e qual é o futuro das hidrelétricas diante das mudanças climáticas?

Os grandes empreendimentos, focam em compensações financeiras e realocação de moradia, falhando em preservar o modo de vida das pessoas
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FRANCISCO COSTA
16 junho 2024
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Usina Hidrelétrica Santo Antônio Energia em Porto Velho - (Foto: Divulgação - UHE SAE)

Como toda hidrelétrica, mesmo com a mais limpa das gerações, seus impactos foram alertados por ambientalistas e ativistas, e seu canteiro de obras foi palco de greves e descontentamento por parte dos trabalhadores.

Por Raíssa Ramos e Guilherme Belém

Na história recente, grandes empreendimentos se ergueram em território rondoniense, e principalmente em Porto Velho, num fluxo de capital e de pessoas que atravessaram a cidade, deixando apenas vestígios e suas construções para trás. A exploração da borracha deixou uma estrada de ferro desativada, e logo após, ciclos de exploração diferentes causaram marcas novamente, algumas mais visíveis que outras. O mercúrio para a extração de ouro no leito dos rios é um inimigo invisível, e o mais recente, a hidrelétrica de Santo Antônio, é escandaloso em sua dimensão. A grande barragem edificada no horizonte barrento do rio pode ser vista do complexo da Madeira Mamoré, como se o passado e presente da cidade se encarassem. Se os trens descansam na beira do rio, desativados, a hidrelétrica de Santo Antônio esteve em uma situação parecida no dia 2 de outubro de 2023.

Após o Madeira atingir o seu menor nível histórico, 1,10m, a quarta maior usina Hidrelétrica do Brasil foi forçada a paralisar suas turbinas e desligar a conexão com o linhão que transmite essa energia pelo país. O único momento em que a usina parou foi quase 10 anos atrás, na grande cheia de 2014. Com esse evento, os olhos do governo se voltaram mais uma vez para Porto Velho quando uma comitiva integrada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin visitou a capital dois dias depois. Com a pauta de transição energética sendo cada vez mais discutida pelo governo brasileiro, houve uma tensão entre a área ambiental e a energética quando as termelétricas rufaram para dar conta da demanda. Com um panorama climático e ambiental em crise nos últimos anos, a dependência nas águas amazônicas para a geração de eletricidade se torna um empreendimento incerto, ainda mais pensando nos desdobramentos que se dão com as construções de barragens.

É fato que todas as grandes construções geram uma perturbação nos locais onde chegam e esse é um dos impasses que governos têm ao discutir uma transição energética limpa, ou pelo menos é o discurso que se constrói pelas empresas e instituições que disparam a palavra “ecologia” num sentido mercadológico, num misto de culpa e isenção de responsabilidade, pois é o “necessário” para fazer energia. O Brasil já teve discursos parecidos ao redor do potencial hidrelétrico, que remontam ao governo de Getúlio Vargas e ao regime militar, onde tais obras faraônicas se tornaram símbolo do desenvolvimento, e também um troféu para ser mostrado. Esses troféus são Balbina e Tucuruí, monumentos que são considerados grandes desastres ambientais e humanos devido a necessidade de alargar vastas áreas para a criação de reservatórios.

Muitas coisas mudaram desde então e as novas hidrelétricas no rio Madeira adotaram o modelo de fio d'água, que evita o alagamento e que, num primeiro momento, minimiza os impactos. No entanto, a implementação desses projetos não está isenta de controvérsias, especialmente no que tange à realocação das comunidades afetadas. Os grandes empreendimentos, amparados pela legislação brasileira, focam em compensações financeiras e realocação de moradia, falhando em preservar o modo de vida dessas pessoas que habitavam esses locais em simbiose com a terra e natureza que tinham à disposição, sem nenhum custo. Para os 2.832 cidadãos afetados pela Usina de Santo Antônio, pouco importa a diferença de um fio d’água para um modelo de alagamento, mesmo os ressarcimentos parecem vazios diante da perda.

Uma hidrelétrica contra o meio ambiente 

Na época, a UHE Santo Antônio era uma maravilha da engenharia moderna. Construída no curso do Rio Madeira no período de 2008 a 2016, mas inaugurada em 2012, o projeto foi alvo de diversas polêmicas desde antes do início de suas obras. Como toda hidrelétrica, mesmo com a mais limpa das gerações, seus impactos foram alertados por ambientalistas e ativistas, e seu canteiro de obras foi palco de greves e descontentamento por parte dos trabalhadores. O projeto, que custou R$ 19 Bilhões, foi fruto da abertura de uma concessão do governo federal da época, fazendo parte do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), visando abastecer as regiões norte, sul e sudeste com energia. As 50 turbinas da usina tem potência instalada de 3.568 megawatts e tem capacidade para atender ao consumo de até 45 milhões de pessoas, mas o projeto foi concebido para atender prioritariamente indústrias eletrointensivas.

Essas situações não existem em um vácuo, e uma série de dispositivos governamentais e institucionais dão direito para que o estado junto de empresas tenham respaldo para levantar essas estruturas. A professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Maria Madalena de Aguiar Cavalcante, que lidera o Grupo de Pesquisa em Geografia e Ordenamento do Território na Amazônia (GOT-Amazônia), explica como esses processos regulatórios acontecem. “Há um levantamento e na medida em que o governo, junto com a iniciativa privada, almeja implantar a hidrelétrica, ele começa o processo de licenciamento ambiental. É feito um estudo de viabilidade econômica, depois os estudos de impacto ambiental, até emitir a licença de instalação, depois de operação. O próprio órgão ambiental vai estabelecer dentro desse processo de instalação, de operação, o que é necessário. E a partir disso, no termo de referência que o órgão ambiental vai emitir, a empresa faz os estudos para atender esses requisitos”.

A professora Malu Messias, do Departamento de Biologia da Unir, explica que pescadores cada vez têm que ir mais longe para captura de peixes comerciais. (Foto: @ Raissa Ramos Fontes - Cedida - Voz Da Terra)

Na questão da terra, o estado desapropria o território, ou seja, retira o espaço de uma pessoa tomando para si o status de proprietário. Para isso acontecer, se constroem também discursos para pautar essas decisões, nesse caso a construção da hidrelétrica e depois disso começa o processo de indenização. Na tecnicidade, não haveria problemas, mas essas ações são tortuosas e litigiosas, como acrescenta a pesquisadora: ”Parte da população que ocupava a antiga Cachoeira de Teotônio, hoje está em Nova Teotônio. Então foi um processo de retirada para reassentar em uma nova área e tiveram subsídios em termos de recurso financeiro durante anos para poder restabelecer a vida novamente e é desenvolvido alguns projetos para manter essas famílias em atividade. Há toda uma justificativa de que, a bem do interesse público, em prol da expansão energética, isso vai favorecer não só o estado de Rondônia, mas também o Sistema Integrado Nacional.” 

Além de todo o deslocamento de pessoas causado pelos reassentamentos, os projetos hidrelétricos enchem as cidades de pessoas que vieram para trabalhar, causando outros transtornos. Os funcionários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de Rondônia, que tem a função de analisar e acompanhar os tensionamentos demográficos que esses projetos causam, viram de perto esses acontecimentos na época, como explica Jorge Elarrat, Gerente de Planejamento do IBGE de Rondônia: “Nós temos uma metodologia própria e só consideramos morador a pessoa que migrou definitivamente para não voltar mais. Nos alojamentos dos trabalhadores, contabilizamos 21 mil homens. Desses 21 mil homens, só 5 mil foram considerados moradores. Os outros 16 foram entendidos como pessoas em trânsito, que estariam aqui por uma circunstância. Essas pessoas que vêm para a cidade temporariamente acabam aumentando a demanda de serviços, aumentam o preço do imóvel, estressam a cidade, e começa a faltar vagas em escolas e em hospitais”.

“Há a justificativa de que, a bem do interesse público, em prol da expansão energética, isso vai favorecer não só o estado de Rondônia, mas todo o Brasil” Maria Madalena de Aguiar Cavalcante, professora do Departamento de Geografia da Unir

 

Técnicos do IBGE analisam o fenômeno da movimentação humana em torno da construção da UHE Santo Antônio (Foto: @ Raissa Ramos Fontes - Cedida - Voz Da Terra)

Consequências socioambientais

Com uma nova população que não é fixa, era difícil criar políticas públicas para atender essa quantidade de pessoas, ainda mais com o pouco recurso que a cidade de Porto Velho tinha por ser uma cidade consideravelmente pequena. Havia uma ansiedade com o que o desemprego causado pelo fim das construções da usina causariam na cidade, como o aumento da criminalidade, prostituição e desabrigados. Porém, o término das obras em Santo Antônio coincidiu com o começo das obras em Belo Monte em Altamira e esse contingente migrou para a cidade paraense.

Se parte dos trabalhadores foram embora, os reassentados foram para a cidade e territórios inteiros foram redesenhados para dar moradia aos que ficaram sem casa. O caso de Mutum-Paraná exemplifica as consequências socioambientais e administrativas desses megaprojetos, culminando na desapropriação completa da sua sede e na realocação de sua população para Nova Mutum, um núcleo urbano inserido no distrito de Jaci.

Este evento não apenas deslocou fisicamente a população de Mutum-Paraná, mas também redefiniu as fronteiras administrativas e demográficas da região. Com a sede desapropriada e submersa, Mutum-Paraná transformou-se em um distrito sem sede, mantendo-se ativo apenas no papel, com seus códigos geográficos preservados pelo IBGE. Por outro lado, Nova Mutum, agora abrigando 4.300 domicílios, tornou-se um centro urbano emergente, refletindo uma composição populacional majoritariamente nova, distinta da original. Um distrito inteiro perdeu completamente sua sede física, enquanto outro acolheu uma diversidade de novas residências, em grande parte oriundas das necessidades de alojamento geradas pela construção da usina. Apenas 680 domicílios foram destinados aos reassentados de Mutum, com o restante representando as novas construções para funcionários das empresas envolvidas na obra.

Impactados e afetados 

Esse processo de desterritorialização, com novas condições de vida, incluindo residências de concreto inadequadas para a criação de animais e a falta de acesso a recursos naturais, representaram um desafio significativo. A mudança foi acompanhada também por requalificações forçadas para os afetados, e pessoas que antes apenas pescavam começaram a criar peixe para se sustentar. O deslocamento não apenas provocou uma crise identitária entre os afetados, mas também levantou questões sobre a eficácia e justiça das políticas de compensação implementadas. Alguns receberam indenização, outros receberam casas, outros receberam as duas, e essa situação agravou o clima de ressentimento entre os afetados. Ítalo Cardoso, que morava num dos pontos de alagação, desabafa: “Os que conseguiram negociar, saíram com lucro total, por quê? Tendo em vista a situação de pobreza dos moradores mais vulneráveis, estes saíam como invasores de terra ou moradores que não tinha patente sobre as casas onde moravam, com tudo, outros eram mais beneficiados, entende? Havia uma seletividade nas retiradas, visando quem era os que precisavam mais ou mais afetados”.

Em um relato diferente, Raimundo Braga Viana, ex-morador da região de Casco de Morro dos Macacos, relembra sua experiência durante o processo de relocação devido à construção da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, em Porto Velho. Compartilhando sua jornada desde a notificação até o reassentamento, Viana destacou a generosidade e agradece à empresa pelo apoio oferecido. Descrevendo a mudança como uma transformação completa em sua vida, ele ressalta as melhorias significativas em sua nova casa e terra. No entanto, ele também compartilha suas preocupações com o custo da energia elétrica, atribuindo-o ao uso intensivo de água em suas atividades agrícolas.

Ítalo também explica que algumas casas que foram doadas eram pequenas comparadas com a quantidade de pessoas que iriam morar no espaço. Uma casa de cômodo comportava uma família de cinco ou mais pessoas, por exemplo. “Realocar era fácil, se estabilizar e seguir com a vida é o que se tornou difícil”, opinou. Esse processo não terminou com o fim da construção das hidrelétricas e até hoje as famílias travam batalhas judiciais com a Santo Antônio Energia para, por exemplo, conseguir condições melhores nas casas recebidas, como é o caso do Reassentamento Riacho Azul, junto com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que tentaram apresentar um acordo no início de 2022 para a regularização de lotes de produção.

“Os que conseguiram negociar saíram com lucro total”, desabafa o ribeirinho Ítalo Cardoso  (Foto: @ Raissa Ramos Fontes - Cedida - Voz Da Terra)

O que sobrou após o grande empreendimento hidrelétrico 

Para aqueles que foram reassentados para perto do rio Madeira, há uma sensação de que as águas não são mais as mesmas, e não é apenas uma suspeita, já que pesquisas apontam as dimensões da pressão ambiental em cima das populações de peixes, como explica a professora do curso de Biologia da Unir e Vice-líder do grupo de pesquisas "Estudos ecológicos da biodiversidade da Amazônia Sul-Ocidental”, Malu Messias: “Diminuiu muito o pescado nesse trecho do Madeira nos últimos anos. Os pescadores precisam se deslocar em grandes distâncias, até no baixo madeira, perto da confluência com o negro, para pescar, gastando muito mais combustível, gelo, elevando o preço do pescado para o consumidor final.”

“Pescadores têm que ir mais longe, no baixo Madeira, para pescar, gastando muito mais combustível, gelo, elevando o preço do pescado para o consumidor final” Malu Messias, professora do Departamento de Biologia da Unir.


Para a pesquisadora, a escada construída pela hidrelétrica para possibilitar a migração de bagres e outros peixes é insuficiente, e nem todos os animais conseguem fazer a travessia. Além disso, com as explosões dos pedrais que compunham as cachoeiras, houve uma grande mortandade da fauna aquática. No contexto ambiental como um todo, a construção de usinas hidrelétricas implica em perdas significativas de floresta e inundação de vastas áreas, afetando diretamente a fauna terrestre. Relatos de ex-alunos da Unir envolvidos em atividades de resgate apontam para um número alarmante de mamíferos, incluindo espécies arborícolas e terrestres, que morreram afogados devido às inundações provocadas pelas barragens.

Mesmo com o discurso de que o modelo de fio d’água proporciona um menor nível de áreas alagadas, há controvérsias na intenção de diminuir esse impacto de fato. Em 2013, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) aprovou o aumento da capacidade originalmente projetada para usina, com a instalação de 6 novas turbinas para abastecer Acre e Rondônia, que resultou também na elevação da área do reservatório. Por isso, é comum que as pessoas de Porto Velho associarem a cheia de 2014 com a construção da barragem. Embora a cheia tenha sido ocasionada pela situação climática adversa, a pesquisadora Maria Madalena Cavalcante elucida o papel de Santo Antônio na cheia.

“De fato, há um fenômeno natural, onde você tem, segundo os estudiosos, uma promoção de eventos extremos devido ao aquecimento global. O que é isso? Quando a seca é muito seca, quando a cheia é muito cheia. Com o degelo, o volume da água causou uma enorme cheia. Isso é um processo natural. Porém, nós temos no percurso do rio duas usinas, uma muito próxima da outra, considerando o tamanho que é o Rio Madeira. Embora ela não seja um barramento, como foi Samuel, houve interferência nesse processo de cheia, até porque a implantação da usina era muito recente. Então, não se sabia exatamente se deveria reter a água ou soltar, tanto é que nesse período da Grande Cheia, liberaram tudo, para não represar nada. Houve um acordo entre Jirau e Santo Antônio, porque Santo Antônio tinha que liberar a vazão d'água de Jirau, 100%, para evitar a sobrecarga e uma possível inundação.”

Não há um consenso se os estudos sobre as condições do Madeira abarcavam ou não a bacia como um todo, mas o superintendente do IBGE de Rondônia, Luiz Cleyton Holanda, que participou dos estudos de viabilidade na época acredita que os estudos que as empresas contratadas fazem sempre dizem o que é mais favorável para a implantação mais rápida possível, além de terem negligenciado outros pré-requisitos: “Os simulados de evacuação que aconteceram ano passado deveriam ter sido feitos quando a hidrelétrica recebeu a licença de instalação. Na verdade, é um dos condicionantes para receber a licença de instalação, e fizeram mais de 10 anos depois”.

Mesmo que seja argumentado que o Brasil necessita de mais energia, há interesses além. Um empreendimento da magnitude de Santo Antônio movimenta um grande capital e existe um lobby para que essas obras sigam adiante. Na época das discussões da instalação da Usina, o movimento “Usinas Já”, encabeçado pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Rondônia (CREA-RO), começou a ser difundido, com direito a adesivos nos carros, numa tentativa também de mobilizar a população para ser favorável a obra. Num primeiro momento, havia esse interesse pela geração de emprego, mas todo o desenvolvimento que uma região recebe com a circulação de dinheiro e pessoas se desfaz com o fim das obras.

Outra questão que permanece como ponto de descontentamento é o preço salgado que os portovelhenses pagam em energia. O doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos e pesquisador na área de Geração da Energia Elétrica e fontes renováveis locais, Artur de Souza Moret, explica que diferentes fatores encarecem o preço da energia, e em Porto Velho se paga também um custo pela redistribuição que ocorre entre os estados: “O custo da conta de eletricidade é resultado de uma cesta de custos: custo da aquisição da eletricidade, custo da distribuição, custo da transmissão e custo das perdas técnicas. Por incrível que pareça, pagamos alto no custo de transmissão porque a energia gerada vai para São Paulo e depois volta para Rondônia. O custo está no 22o lugar de 50 distribuidoras. Entretanto, temos um custo bem alto das perdas técnicas, porque a qualidade da distribuição em Rondônia é alta, além dos roubos e etc”.

Para Moret, não haveria necessidade de se criar novas hidrelétricas se houvesse manutenção para evitar as perdas técnicas de energia, mas há outras forças em jogo. A produção de energia se comporta como indústria e não como um direito dos cidadãos, e hoje, segundo estimativas do Ministério de Minas e Energia, mais de 100 mil pessoas em Rondônia não possuem acesso à eletricidade mesmo morando ao lado de uma hidrelétrica. 

Todas essas questões se tencionam com o problema das mudanças climáticas, que afetam a geração de energia e também a pretensa solicitude do governo brasileiro em efetuar uma transição energética limpa. A preferência pela energia hidrelétrica pela sua “sustentabilidade” não é convincente e com a eventual perda dos recursos hídricos, as termelétricas serão novamente recorridas, mesmo possuindo um potencial poluidor considerável. Os impactos das secas já se mostram em números, já que o levantamento do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) apontou um aumento de 77% na produção de energia por queima de combustíveis fósseis em 2021 no Brasil. Desse modo, há um sistema em que ao passar por crises climáticas, a indústria aciona o modelo de energia que causa as crises.

Para Moret, esse contexto deveria suscitar uma reflexão crítica sobre o futuro da geração de energia no Brasil e na Amazônia. Com novos projetos hidrelétricos em vias de acontecer, cresce uma preocupação sobre a prioridade que o estado brasileiro dá a esses grandes empreendimentos: "A transição energética deve ser vista como uma oportunidade para explorar fontes renováveis, como a solar fotovoltaica e a eólica, reduzindo nossa dependência das hidrelétricas e termelétricas. O desafio é significativo, dada a força da indústria energética tradicional, mas é uma mudança necessária para nosso futuro sustentável". 

Nesse contexto, o que fazer com as hidrelétricas que já foram construídas? Moret argumenta que as hidrelétricas não possuem projetos para preservar os rios que elas usam para funcionarem, e políticas de preservação seriam suficientes para reverter a crise hídrica, como a recuperação das matas ciliares da bacia para evitar o assoreamento e proteger e recuperar a biodiversidade que influencia na qualidade da água. As hidrelétricas de modelo fio d’água são mais sensíveis a mudanças climáticas por usar um reservatório menor, mas se Santo Antônio escolher aumentar o reservatório mais uma vez para continuar gerando energia, mais desdobramentos e perdas vão acontecer.

“A transição energética deve alcançar todas as camadas da sociedade, especialmente aquelas comunidades vulneráveis que ainda carecem de acesso básico à eletricidade” Arthur Moret, professor e pesquisador da Unir

O outro lado 

A assessoria de comunicação da Santo Antônio Energia não retornou sobre possíveis reformas na hidrelétrica com foco em tornar a usina mais resistente a condições climáticas adversas. Também não houve resposta se houve participação da empresa nas reuniões dos comitês de crise hídrica instituídos pelo governo do estado de Rondônia. Se há algum projeto sendo desenvolvido, a Santo Antônio Energia é pouco transparente. Enquanto há inércia nesse assunto, órgãos como Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) apontam para uma seca mais severa para o segundo semestre de 2024 em relação ao mesmo período no ano passado.

Para alguns especialistas como Maria Madalena Cavalcante, as hidrelétricas não irão parar de ser construídas mesmo com as mudanças climáticas. Para Artur Moret de Souza, é possível pensar no interesse social da energia no planejamento de UHEs, mas a construção de grandes barragens é extremamente rentável e não há sinal de mudança dessa mentalidade. Hoje os olhos do mundo se voltam para o Brasil na questão da transição energética, mas o país e o governo se mostram acanhados para liderar uma mudança nesse nível.

Em 2007, o presidente Lula em seu segundo mandato ironizou o parecer dos técnicos do Ibama que inviabiliza a construção de Jirau e Santo Antônio ao dizer “Agora não pode por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?”. Ao tentar conduzir o país para uma geração de energia mais limpa em 2024, ele acaba por colher os frutos da decisão que fez no passado. Aquele peixe em risco de extinção fazia parte do modo de subsistência dos cidadãos brasileiros que não precisavam dessa energia, mas para alguns o progresso parece existir de uma só maneira no Brasil: com alvenaria, asfaltos e longe da natureza.

Se há interesse genuíno em levar a transição energética adiante de forma séria, não será por meio de novas hidrelétricas. Moret enfatiza: “Não podemos deixar ninguém para trás. A transição energética deve alcançar todas as camadas da sociedade, especialmente aquelas comunidades vulneráveis que ainda carecem de acesso básico à eletricidade. Isso requer uma reavaliação profunda de nossas prioridades e um compromisso com a justiça social e ambiental".


Barragem da Hidrelétrica Santo Antônio Energia (Divulgação - UHE SAE)




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