Trecho sem asfalto da BR 319, entre Humaitá e Realidade (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) |
Por Leanderson Lima e Alberto César Araújo (Fotos) - Na Amazônia, estradas são sempre relacionadas a problemas ou soluções, a depender de quem esteja falando delas. O corte raso de árvores nativas para dar passagem a vias transitáveis tem trazido bem mais do que veículos para dentro da floresta. O ciclo é conhecido: primeiro o desmatamento desenfreado, acompanhado da grilagem de terras e de extensas áreas que viram pasto, o gado chega, parte e, em poucos anos, dá lugar à monocultura, na maioria das vezes, de soja. As precárias condições da BR-319 têm freado essa lógica destrutiva.
A Amazônia Real percorreu, literalmente aos trancos e barrancos, trechos da BR-319 para buscar respostas a uma só pergunta: como salvar a Amazônia? Dom Phillips, o jornalista britânico assassinado em 5 de junho com o indigenista brasileiro Bruno Pereira no rio Itacoaí, na divisa com a Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, dedicou seus últimos anos de vida para responder a essa questão central para a Humanidade. Dom já sabia dos riscos do garimpo e da pesca ilegal, da exploração madeireira, das grandes obras de infraestrutura, das fraudes na compra de vastas áreas de mata e dos povos da floresta ameaçados. E alertava que estradas abrem caminho para a degradação ambiental.
Convidada a integrar o Projeto Bruno e Dom coordenado pela Forbidden Stories, consórcio internacional para dar continuidade ao trabalho de jornalistas assassinados ou sob ameaça, a agência transitou pela rodovia BR-319 em março deste ano. Estava acompanhada de uma equipe do jornal Expresso, de Portugal, um dos 16 veículos de comunicação de 10 países do consórcio. O que se lerá a seguir é o relato de uma viagem e de muitas escutas. Era importante ouvir aqueles que sonham com a sua pavimentação e também os contrários à conclusão das obras; o que têm a dizer os cientistas e ambientalistas sobre essa estrada que é usada como “muleta eleitoral” por políticos há 35 anos.
Esta é uma narrativa sobre a BR-319, uma estrada que se estende por 877 quilômetros e foi parcialmente tomada pela floresta no fim dos anos 1980. Se reconstruída, como planejado, o asfaltamento da rodovia pode irradiar o desmatamento a até 150 quilômetros de suas margens esquerda e direita, atingindo o coração ainda bem preservado da Amazônia, na região que fica entre os rios Purus e Madeira, entre os estados de Rondônia e Amazonas. É uma área maior que o estado do Rio Grande do Sul. E representa também o maior desafio para o futuro da maior floresta tropical do mundo. Na encruzilhada da história, havia uma BR-319 no meio do caminho, parafraseando o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Um dos destinos principais desta viagem era chegar à aldeia São Francisco, na TI Apurinã do Igarapé Tauá-Mirim, no município de Tapauá, na parte sul do Amazonas, a área do estado mais impactada por desmatamento, grilagem e queimadas. Autorizadas previamente pelo cacique-geral, Marino Adriano Batista, o Marino Apurinã, as equipes da Amazônia Real e do Expresso teriam a oportunidade de presenciar o “Kenêre”, uma grande festa de celebração que reuniu indígenas da região em torno da BR-319. A pauta não era propriamente os admiráveis festejos, mas a possibilidade de ouvir lideranças de povos que até agora têm impedido que a rodovia seja a mais nova porteira para a destruição da floresta. Sem mesmo saber, eles representam parte da resposta que Dom Phillips procurava em suas andanças pela Amazônia.